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26 março 2010

85. Índios

A legião de fãs da Legião Urbana é grande. Com letras que, em geral, tematizava as incertezas comuns ao período (de fronteira) da adolescência, o grupo atingia em cheio o seu público alvo. E acabou se tornando uma importante, senão a mais importante, banda dentro do BRock (rock brasileiro).
Com a morte do vocalista Renato Russo (em 1996), a Legião Urbana perdeu parte da potência e da visibilidade, já que, com sua voz incomum no meio roqueiro, Renato compôs (e personificava em si) uma performance singular. Mas a mitologia em torno das canções permanecem e permanecerão, pois não faltam, como apontei acima, antigos e novos fãs engendrando a perpetuação da Legião.
A canção "Índios", de Renato Russo, está no segundo disco do grupo, sintomaticamente chamado Dois, de 1986. Há uma mesma batida (pulso) melódica que atravessa toda a canção (ora mais suave, ora mais intensa), que parece querer indicar certo êxtase ritualístico, remetendo o ouvinte às culturas indígenas, em sua maioria, exterminadas pelos colonizadores.
A letra narra (pela voz do índio: o sujeito da canção é um (uma legião) indígena) as atrocidades perpetradas pelo homem branco. A mensagem reitera a ideia do índio ingênuo, que chora sozinho, quando se vê usurpado, através do espelho dado como troca por sua alma (seu tesouro).
Mas é exatamente o lance do espelho que chama à atenção e torna a letra confusa, e/ou complexa: nos versos "mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente" o sujeito deixa escapar que a doença está nele mesmo. Ora, se o espelho, a princípio, reflete aquilo que está à sua frente, e é o sujeito (índio) quem se mira, conclui-se que o sujeito está, aqui, assumindo um mal (um mundo doente) que lhe vai no ser; que lhe permite "aceitar" as trocas impostas pelo branco.
Obviamente, podemos ler o espelho apenas como mais um instrumento de troca, que roubava a alma do índio, e, portanto, mais um despoletador das misérias futuras: "o futuro não é mais como era antigamente". Mas fica a dúvida na intenção do sujeito, ainda mais quando ele afirma que "tentou chorar e não conseguiu".
Seja como for, a canção revisita a genealogia de nossa cultura (brasileira). Por fim, o sujeito (quem lhe dera) gostaria de voltar no tempo e, mais prudente, lutar de igual para igual.

***

Índios
(Renato Russo)

Quem me dera
Ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro
Que entreguei a quem
Conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora
Até o que eu não tinha

Quem me dera
Ao menos uma vez
Esquecer que acreditei
Que era por brincadeira
Que se cortava sempre
Um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda

Quem me dera
Ao menos uma vez
Explicar o que ninguém
Consegue entender
Que o que aconteceu
Ainda está por vir
E o futuro não é mais
Como era antigamente

Quem me dera
Ao menos uma vez
Provar que quem tem mais
Do que precisa ter
Quase sempre se convence
Que não tem o bastante
Fala demais
Por não ter nada a dizer

Quem me dera
Ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente

Quem me dera
Ao menos uma vez
Entender como um só Deus
Ao mesmo tempo é três
Esse mesmo Deus
Foi morto por vocês
Sua maldade, então
Deixaram Deus tão triste

Eu quis o perigo
E até sangrei sozinho
Entenda
Assim pude trazer
Você de volta pra mim
Quando descobri
Que é sempre só você
Que me entende
Do início ao fim

E é só você que tem
A cura do meu vício
De insistir nessa saudade
Que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Quem me dera
Ao menos uma vez
Acreditar por um instante
Em tudo que existe
E acreditar
Que o mundo é perfeito
Que todas as pessoas
São felizes

Quem me dera
Ao menos uma vez
Fazer com que o mundo
Saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz
Ao menos, obrigado

Quem me dera
Ao menos uma vez
Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado
Por ser inocente

Nos deram espelhos
E vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui

4 comentários:

Vanusa Silva disse...

Ouça o belo dueto de Marisa Monte e Renato Russo, Celeste, no Blog Marisa & Cia http://marisaecia.blogspot.com

Márcia Leite. disse...

do tempo em que renato russo vociferava tudo o que a gente queria dizer! :)

Unknown disse...

essa canção fala mais do que sobre os índios brasileiros e sua relação com os portugueses. Aliás, nem fala disso.Essa música, como o Renato Russo mesmo já explicou melhor do que eu, não fala de índios, mas sim de "Índios". Índios", escrita com aspas, para nos mostrar a boa e grande ironia inteléctica de Renato Russo, é uma obra que fala de falsos índios. E isso significa que essa canção diz respeito a quem é ingênuo e puro, livre de maldades, tal como os índios. No verso "mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente" ele se inclui entre os interlocutores, como parte da sociedade que se fez doente. Ao final este mesmo verso é repetido à parte da estrofe original, mudando o discurso de acusatório para reflexivo/culposo. Até mesmo a interpretação de Renato Russo demonstra este fato: o tom grave do cantor passa a mais brando ao final da música.
Muito há que se extrair da música, mas a ideia principal: o horror ante o mundo imperfeito e injusto, a desilusão, a queda (sagrar) e a hipotética cura.

Rafael Mori disse...

Concordo com o comentário acima: é preciso atentar-se para as aspas no título da canção. Provavelmente, Renato lembrou-se do expediente utilizado por David Bowie em "Heroes" - que também fala sobre "heróis", e não heróis.