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31 maio 2010

151. Telhados de Paris

Para Fabiano Teles

Traduzir um poema é algo desumano (nos vários sentidos), alguns dizem que é um crime. Sem querer entrar no mérito, o fato é que há algumas boas traduções (ou transcriações, como os irmãos, poetas e grandes transcriadores Augusto de Campos e Haroldo de Campos sugerem).
No campo específico da canção, há inúmeras boas versões (e a grande maioria prefere este termo, ao invés de traduções) para canções estrangeiras. Mais um privilégio dos tempos de rápido e fácil contato entre culturas.
Zélia Duncan, por exemplo, tem se aventurado, com êxito, na feitura de versões. Pelo sabor do gesto (2009) tem duas: "De Bonnes Raisons" e "As-tu déjà aimé?", ambas de Alex Beaupain (compõem a trilha do belo filme Les Chansons d'amour, de Christophe Honoré), viraram "Boas razões" e "Pelo sabor do gesto", respectivamente.
Dou tais informações, pois percebemos em Pelo sabor do gesto um fio condutor montado sobre a discussão das aproximações e dos distanciamentos afetivos. Questão que atravessa o filme (tipicamente parisiense) e que Zélia, em mirada primorosa, traz para montar seu disco.
A perspectiva (algo monólogo) de um sujeito que canta suas dúvidas ganha adensamento e fixidez com a presença da regravação de "Telhados de Paris", de Nei Lisboa.
"Telhados de Paris" tematiza o próprio fazer poético-cancional, pois quando diz que "um silêncio sem fim (deixa) a rima assim sem mágoa, sem nada", a canção aponta para a estrutura formal do texto cantado. Não há rimas (métricas fixas, nem versos retos, corretos) na canção, muito embora haja uma rima insondável: entre a paisagem vislumbrada e o estado interno do sujeito.
A entoação quase falada (tranquila) de Zélia Duncan intensificam a sensação de que a canção está sendo "feita" naquele instante da audição. O ouvinte é convidado (a melodia com arranjo reiterativo ajuda) para entrar no estado das sensações do sujeito.
Tudo é incompreensão diante do sujeito que canta, ao final, para a dona de seus olhos (doidos). Ele sabe que, de algum modo, o comum e o simples estão lhe revelando algum sentido maior de existência.
O sujeito se estranha, ao estranhar a paisagem que mora ao lado (telhados de Paris em casas velhas), mas parece outro país. Afinal, a canção "fala" sobre conjunções e disjunções (proporcionadas pela circularidade do vento outonal) amorosas entre o sujeito e o outro, mas, principalmente, entre o sujeito e ele mesmo.
Zélia Duncan, namorada da música e da poesia, sabe que a canção "só se realiza em ouvidos alheios" e cria canções para encantar, pelo (nada simples) sabor do gesto.

***

Telhados de Paris (Nei Lisboa)

Venta, ali se vê
Aonde o arvoredo inventa um balé
Enquanto invento aqui pra mim
Um silêncio sem fim
Deixando a rima assim
Sem mágoa, sem nada
Só uma janela em cruz
E uma paisagem tão comum
Telhados de Paris
Em casas velhas, mudas
Em blocos que o engano fez aqui
Mas tem no outono uma luz
Que acaricia essa dureza cor de giz
Que mora ao lado, mas parece outro país
Que me estranha, mas não sabe se é feliz
E não entende quando eu grito
Eu tenho os olhos doidos, já vi
Meus olhos doidos são doidos por ti

O tempo se foi
Há tempos que eu já desisti
Dos planos daquele assalto
De versos retos, corretos
E o resto de paixão, reguei
Vai servir pra nós
E o doce da loucura é seu, é meu
Pra usar a sós

4 comentários:

Fabiano Teles disse...

Meu querido amigo, o q dizer diante da dedicatoria? Muitissimo obrigado!

Eli disse...

Fantástico, o texto me emocionou muito... conseguiu explicitar coisas que sentimos ao ouvi-lo. PArabéns

Anônimo disse...

só faltou dizer que o arranjo original de nei lisboa é infinitamente superior à interpretação de zélia duncan.
voz e violão de nei lisboa expressam muito melhor a sensibilidade presente na letra de "telhados de paris".

ADEMAR AMANCIO disse...

Não conheço essa música,mas o seu texto foi um dos melhores que li.