Pesquisar canções e/ou artistas

25 janeiro 2010

24. Um índio

Há quem diga que Doces Bárbaros (1976) foi o último suspiro da Tropicália, enquanto movimento. O fato é que, a turma formada por Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Gilberto Gil implodiu a questão da identidade nacional ao incorporar as imagens míticas de cunho nacionalista do brasileiro.
A canção "Um índio", de Caetano Veloso, cantada com o vigor da intérprete de "Cárcara", com a retomada do regionalismo como matéria para se pensar o Brasil, por dentro, em contraste e união com uma melodia algo telúrica amplia os elementos da estética romântica e utópica proposta pelo doces bárbaros.
A sequência de assonâncias, proliferação de significantes, com o som da vogal "i" - Ali, Peri, Lee, Ghandi - fortalece o significado que o texto, sozinho, não deixa perceber: a força do que estar por vir: do índio que virá.
Este índio messiânico evoca a ideia da pureza original e física, mas condensa também em si as genealogias das religiões primordiais: indígenas, Taoísmo, Islamismo, Candomblé e Hinduísmo. Tamanha potência de vida é larva que cobrirá tudo e expurgará todos os males, exatamente porque não negará o humano demasiado humano, pelo contrário.
Importa lembrar, além desta arrebatadora interpretação da abelha rainha, a versão que um indefectível Ney Matogrosso deu à canção, para um clipe exibido na TV: Ney se monta, com luvas de longas unhas prateadas e uma exuberante máscara futurista, incorporando (recebendo: sendo o cavalo) o índio revolucionário (doce bárbaro) que diz SIM à vida; que guarda o óbvio segredo da felicidade.
Não é fácil lidar com o óbvio. Muito mais complexo é trabalha-lo poeticamente. O sujeito da canção mostra isso ao apresentar uma híbrida proliferação de signos que circulam a obviedade, mas não a entrega: deixa ao ouvinte a conclusão final. Ou melhor, espera que o índio pouse no coração do hemisfério sul, na América colonizada, para que a epifania aconteça.

***

Um índio
(Caetano Veloso)

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio

6 comentários:

Mitchell Howard disse...

Gostaria de saber se você poderia informar este Não-Brasileiro que foi o "Peri", referida nesta canção?

Obrigado,
Mitchell Howard
Whidbey Island, WA, USA

Leonardo Davino disse...

Basicamente, Peri é o personagem do livro "O Guarani", do escritor romântico José de Alencar. Índio valente, corajoso, chefe da nação goitacá, ele abandona seu povo para servir a Cecília, que julga ser “Iara”, a senhora.

Ele é um "super-homem" que encarna as qualidades que o autor lhe confere como símbolo da terra e da pátria brasileira.

Mais próximo do exemplo do cavaleiro medieval, a caracterização de Peri renega a imagem do "índio selvagem".

Mitchell Howard disse...

Obrigado pela iluminação da legenda. Eu não li "O Guarani", mas agora eu me lembro de ler sobre o seu lugar na cultura brasileira. Peri. Mohammed Ali. Bruce Lee. Gandhi. E rima tudo! Que legal!

Alexandre Torres Guimarães.'. disse...

Parabéns Leonardo.
Sua explanação é muito rica.

Que bom fazer parte dessa tribo chamada Amor

Alexandre Torres Guimarães.'. disse...

Parabéns Leonardo.
Sua explanação é muito rica.

Que bom fazer parte dessa tribo chamada Amor

Carlão disse...

A vida continua e é para sempre.
Decantada por todos ícones religiosos...
Não precisa de prova por ser o óbvio...
A filosofia basta, basta pensar...
Mas se Jesus, ao voltar e dizer que a vida segue e há outras moradas, que espera a todos do outro lado, não serve para convencer aos que esperam que ele volte de novo, para novamente ignorá-lo ou não entendê-lo ...
Que tal um índio...?
Tô aqui em Mato Grosso, no coração do hemisfério sul, no centro geodésico da américa, onde o sol é magnífico, esperando... (kkk)

Abraços de uma visão...