Em "Burguesia" Cazuza aponta: "eu sou burguês, mas eu sou artista", como se as duas instâncias não se misturassem. De fato, ouvindo "Ouro de tolo", de Raul Seixas, chegamos à conclusão de que o êxito burguês ("estar contente porque eu tenho um emprego, sou um dito cidadão respeitável") não faz sentido no sujeito que "no cume calmo do (..) olho (...) vê assenta a sombra sonora de um disco voador".
Para além das aliterações e assonâncias do verso final da canção, intensificadores do ruído da mensagem, temos aqui a figurativização do desassossego do sujeito que não se adapta à vida burguesa.
Lançada no disco Krig-Ha, Bandolo (1973), "Ouro de tolo" foi um grande sucesso na voz de seu criador. Refinado deboche contra a ditadura e o falso sentimento de ordem que reinava. Era pela paz que o sujeito não queria seguir admitindo as verdades forjadas; a falsa claridade das coisas.
De versos simples e narrativos, a letra (aliada à uma melodia fácil) pegou e ainda hoje serve de mote para as reflexões do sujeito diante da vida. Basta nos sentir incomodados com o rumo das acontecimentos e "Ouro de tolo", qual sereia vertiginosa, chama-nos para outras e novas realidades.
Artista, o sujeito questiona o sucesso e seus ouros. Artista, ele não pode aceitar a estabilidade. O esquema de distribuição das alturas harmônicas, da voz do sujeito que canta, atesta o desnivelamento entre o estado íntimo do sujeito e a melodia lenta e reiterativa que tenta lhe acalmar. Velocidades e freios se alternam.
Ou seja, a base instrumental contrasta com o canto urgente do sujeito: algo precisa mudar, ele sabe, só não tem mais ânimo para o empreendimento. No fundo, ele questiona os critérios para decretar-se feliz. Depois de tudo, o ouro não trouxe felicidade: os meios surgem agora muito mais excitantes do que os fins - o sucesso.
Artista, cuja missão é interferir na estabilidade, nas normas, o sujeito se mobiliza: canta a decepção e engendra desejo. Ele é o poeta crítico que problematiza a vida e complexifica a existência questionando o próprio papel que desempenha no mundo.
Para além das aliterações e assonâncias do verso final da canção, intensificadores do ruído da mensagem, temos aqui a figurativização do desassossego do sujeito que não se adapta à vida burguesa.
Lançada no disco Krig-Ha, Bandolo (1973), "Ouro de tolo" foi um grande sucesso na voz de seu criador. Refinado deboche contra a ditadura e o falso sentimento de ordem que reinava. Era pela paz que o sujeito não queria seguir admitindo as verdades forjadas; a falsa claridade das coisas.
De versos simples e narrativos, a letra (aliada à uma melodia fácil) pegou e ainda hoje serve de mote para as reflexões do sujeito diante da vida. Basta nos sentir incomodados com o rumo das acontecimentos e "Ouro de tolo", qual sereia vertiginosa, chama-nos para outras e novas realidades.
Artista, o sujeito questiona o sucesso e seus ouros. Artista, ele não pode aceitar a estabilidade. O esquema de distribuição das alturas harmônicas, da voz do sujeito que canta, atesta o desnivelamento entre o estado íntimo do sujeito e a melodia lenta e reiterativa que tenta lhe acalmar. Velocidades e freios se alternam.
Ou seja, a base instrumental contrasta com o canto urgente do sujeito: algo precisa mudar, ele sabe, só não tem mais ânimo para o empreendimento. No fundo, ele questiona os critérios para decretar-se feliz. Depois de tudo, o ouro não trouxe felicidade: os meios surgem agora muito mais excitantes do que os fins - o sucesso.
Artista, cuja missão é interferir na estabilidade, nas normas, o sujeito se mobiliza: canta a decepção e engendra desejo. Ele é o poeta crítico que problematiza a vida e complexifica a existência questionando o próprio papel que desempenha no mundo.
***
Ouro de tolo
(Raul Seixas)
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso
Na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar
Um Corcel 73
Eu devia estar alegre
E satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado
Fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa
Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa
Eu devia estar contente
Por ter conseguido
Tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "e daí?"
Eu tenho uma porção
De coisas grandes prá conquistar
E eu não posso ficar aí parado
Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Prá ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco
É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal
E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social
Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador
(Raul Seixas)
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso
Na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar
Um Corcel 73
Eu devia estar alegre
E satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado
Fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa
Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa
Eu devia estar contente
Por ter conseguido
Tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "e daí?"
Eu tenho uma porção
De coisas grandes prá conquistar
E eu não posso ficar aí parado
Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Prá ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco
É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal
E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social
Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador
2 comentários:
Acoooooooooooooorda povo!
O novo ano já começou!!!
Parabéns Leo! De fato vc está certo.
Não teria melhor letra para começar o ano!
Bjs...
Abriu o blog em grande estilo!
Sua análise vai direto ao ponto: a chave da canção está no uso condicional "eu devia" (eu deveria), com o sujeito repetindo o que se esperaria de alguém na posição dele. Foi regravada por, entre outros, Belchior e Zé Ramalho.
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