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25 janeiro 2010

25. Cara valente

A mimosa pudica é uma das chamadas "plantas sensitivas". São aquelas plantas que respondem ao toque estrangeiro fechando as folhas, como defesa natural. Este movimento é chamado de Sismonastia.
Assim como a mimosa pudica, o cara valente da canção gravada por Maria Rita (no disco Maria Rita, 2003) parece avesso ao extímulo externo, com a desculpa de se proteger e ser feliz sozinho.
O sujeito da canção, porém, observa que tudo não passa de uma máscara de alguém que, por algum motivo, não quer tocar na vida: não quer afetar, nem ser afetado. Agindo, assim, apenas como doador de sentido ao canto do sujeito de "Cara valente", de Marcelo Camelo.
O fato é que ele "desaprendeu a dirigir" a própria vida. Ou seja, ele sabia e algo interrompeu o fluxo dos acontecimentos. O cara valente (aliás, uma sutiu e terna evocação do João Valentão caymminiano) hoje, deixa sua vida ser cantada, sem ônus, pelos outros.
No jogo de bem-me-quer e mal-me-quer, o cara acreditou ser possível obter a verdade absoluta, a certeza do caminho. Negou o amor, na busca fracassada da essência: endureceu, corpo e "alma"; virou valente contra si mesmo.
Como na vida não há certezas (profundidades e superfícies se equivalem) a ser (per)seguidas, ele sofre por ter perdido o amor, além de ter investido em estradas que não deram em nada.
Ficamos (nós: ouvintes) sabendo, ou, pelo menos, confabulando, sobre isso através do canto do sujeito, ou seja, de um outro, mas que tenta validar seu canto dizendo que o que é cantado vem da fala do cara valente: "ele não é feliz, sempre diz que é do tipo cara valente". Ou seja, temos uma tradução da tradução dos sentimentos do cara.
O sujeito da canção, mudando o direcionamento de sua mensagem, em um procedimento que faz a canção ter, no mínimo, dois destinos (o ouvinte e o próprio cara valente), pede ao cara que renove a fé na dúvida: no imprevizível que dá vida à vida. E entenda que o mundo pode até ser feito de mágoas, mas a "alegria é a prova dos nove", como disse Oswald de Andrade.
Esta leitura se amplia quando ouvimos a interpretação de Maria Rita. A cantora usa a sátira prosódica - entoação provocante do riso maroto - para mover o outro do atual estado psíquico.

***

Cara valente (Marcelo Camelo)

Não, ele não vai mais dobrar
Pode até se acostumar
Ele vai viver sozinho
Desaprendeu a dividir
Foi escolher o mal me quer
Entre o amor de uma mulher
E as certezas do caminho
E ele não pode se entregar
E agora vai ter de pagar
Com o coração, olha lá
Ele não é feliz
Sempre diz
Que é do tipo cara valente
Mas veja só
A gente sabe
Esse humor é coisa de um rapaz
Que sem ter proteção
Foi se esconder atrás
Da cara de vilão
Então não faz assim rapaz
Não bota esse cartaz
A gente não cai não
Ele não é nada
Olha essa cara amarrada
É só um jeito de viver na pior
Ele não é nada
Olha essa cara amarrada
É só um jeito de viver nesse mundo de mágoas

6 comentários:

Moreira disse...

Leo, você fez com esse blog que eu retornasse a ouvir mais música brasileira, que de mim estava um tanto distante. Agora leio teu blog todos os dias e ouço constantemente a rádio MPBFM - 90,3. Obrigadíssimo!

Leonardo Davino disse...

Poxa Ricardo que coisa boa!
Isso vale tudo!

Abração
e obrigadíssimo!

Roberta disse...

É "desaprendeu a dividir", e não "dirigir"!!

Anônimo disse...

Ola! Gostei muito de sua análise!
Eu vou fazer uma apresentação onde devo interpretar a letra dessa música. Você poderia comentar mais sobre a mesma? E você sabe algo sobre a história da composição?Ficaria muito grata se pudesse me dar uma ajudinha!!!
Bjus...

"Para ELE são todas as coisas..." disse...

hoje acordei cantando esta música, daí acabei chegando aqui !!!
Adorei !!!!

Rafael Mori disse...

Gostaria muito de não repetir, no meu 365 Canções Brasileiras, as obras que você já comentou aqui. Mas "Cara Valente" é uma grande canção e não teve jeito, até porque quis explorar, no post (https://365cancoesbrasileiras.wordpress.com/2019/04/28/118-maria-rita-cara-valente/), aspectos que não tiveram espaço no seu texto - por exemplo, as relações entre essa canção e outras compostas por Camelo na mesma época, como "Cara Estranho" e outras do Ventura.
No mais, quando comparo seus textos com os meus, fico sempre com a sensação de que você consegue um resultado muitíssimo melhor usando uma quantidade bem menor de palavras. Espero um dia ainda chegar lá!