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02 janeiro 2010

2. Manhãs de Setembro

"De tão azul, o céu parecerá pintado. (...) Parecia que alguém tinha recém pintado o céu, de tão azul. Respirei fundo. (...) Setembro estava chegando, enfim". Penso nestes trechos da crônica "Quando setembro vier", de Caio Fernando Abreu, enquanto ouço Vanusa cantar "Manhãs de setembro, de Vanusa e Mário Campanha.
As duas peças - a crônica e a canção - falam das pequenas epifanias que o mês de setembro oferece: a primavera e sua profusão de cores e possibilidades de belezas. Aliás, setembro deixa de ser um período de calendário e passa a ser um "estado de espírito": cheio de promessas de felicidade.
Setembro despoleta as metamorfoses necessárias à realização das personagens, que, de fato, são as responsáveis por engendrar vigor às próprias vidas. Apresentados na primeira pessoa, por alguém que narra lembranças, com um pé no futuro, os textos registram afirmativas: posturas assumidas diante dos apelos da existência.
As novidades e as mudanças, como a vida, começam com a respiração (chave mestre: o sopro primordial do verbo): processo pelo qual o indivíduo roça o mundo ao redor e é por ele sustentado.
Guardada no disco Vanusa, de 1973, a canção "Manhãs de setembro" celebra uma alegria que vem não se sabe de onde, mas, com certeza, de algum lugar de dentro do sujeito. Talvez a alegria (figurativizada no empenho vocal potente com que a cantora interpreta a canção) venha da afirmação "fui eu". Afinal, a capacidade de equacionar atitudes (dores e sorrisos) já é um passo para a iluminação interior, dizem os almanaques e os filósofos.
O sujeito vê e mira para além do horizonte: cria o cenário (colorido pela incidência do sol) para viver sua vida (real). O sujeito pinta (e canta a pintura) seu céu, carrega nos tons de azul, onde, estrela, ele pode brilhar; se torna sujeito e objeto de si.
A letra é um libelo de esperança que toca os corações, especialmente, femininos, pelo poder ativo (de dono da voz e da vida) que carrega. Vanusa, que, entre outras curiosidades, lançou sucessos como "Paralelas", de Belchior, e interpretrou uma simpática versão em português de "I will survive", de Paulo Coelho, em "Manhãs de setembro", personifica, na voz, o desejo da "nova mulher": dona da própria voz, sem medo de assumir erros e acertos, e, com olhos felinos felizes e mãos de cetim, ansiosa para cantar, falar e ensinar.

***

Manhãs de setembro
(Vanusa / Mário Campanha)

Fui eu quem se fechou no muro
E se guardou lá fora
Fui eu quem num esforço
Se guardou na indiferença
Fui eu que numa tarde
Se fez tarde de tristezas
Fui eu que consegui
Ficar e ir embora

E fui esquecida
Fui eu
Fui eu que em noite fria
Se sentia bem
E na solidão
Sem ter ninguém
Fui eu
Fui eu que em primavera
Só não viu as flores
E o sol
Nas manhãs de setembro

Eu quero sair
Eu quero falar
Eu quero ensinar
O vizinho a cantar
Nas manhãs de setembro

11 comentários:

Anônimo disse...

Amo essa música, admiro muito a Vanusa e a história dela... Lembro com saudades Antônio Marcos... Belíssima canção, belíssima recordação! Parabéns pelo blog, super-original!

anrafel disse...

É uma música belíssima, mas não a vejo como uma celebração de alegria. Vejo antes como um desabafo de uma mulher triste e decepcionada, relatando os sacrifícios feitos por alguém e o não reconhecimento desse alguém. Ou seja, envolve a reação diante da ingratidão. Mas, e aí está o ponto positivo, ela não se abate e demostra esperança e vitalidade. Essas duas virtudes serão divididas com os vizinhos e os dias serão como manhãs de setembro: bonitos e esperançosos.

Rafael Mori disse...

Belíssimos, a canção e o texto. Tendo a concordar com comentário acima: a canção é um desabafo. A voz que canta como que esfrega na cara de seu interlocutor todos os sacrifícios porque passou, talvez para sustentar uma relação assimétrica, fadada ao fracasso (em que se doou mais do que recebeu). Suportou tudo quieta, mas agora já é setembro (fim do inverno, início da primavera, tempo de fertilidade e de novos amores) e só lhe resta um grito de libertação: chega, agora o que importa sou eu, é minha vez de jogar.

William II disse...

Acredito que a alegria nem venha da música, nem do sujeito, muito menos da letra, ela vem da melodia, o tom em que a cantora interpreta é impressionante, é como uma antítese, triste letra e bela melodia, eu sempre que escuto sinto a voz dela sorrir no refrão, parece alguém que acordou em pleno mar de flores, em uma bela manhã ensolarada e essa pessoa sorri para a vida. Ah...
Essa música é belíssima

SEZER DE ROMA ALVES DE OLIVEIRA disse...

Parece que Vanusa, assim como muitos artistas brasileiros, passou por um periodo negro em sua vida na esfera emocional exatamente no mesmo periodo da opressão politica por que o Brasil passava, daí o desabafo de querer se "soltar" e se "libertar" por meio da musica, linda musica, de uma linda mulher.

Anônimo disse...

nessa canção ela expõe todo o sofrimento e angustia causado pela ditadura, alem, de expor a enorme tristeza acerca do exilio de amigos ...

Unknown disse...

Que linda análise, estou maravilhada! Realmente é uma música incrível com letras de tocar o interior. Está me tocando nesse momento que estou me descobrindo, saí de um relacionamento que era totalmente envolvida e nesse mês de setembro que com essa música está me fazendo ver tudo diferente. Parabéns!

Unknown disse...

Que Deus ilumine a alma de nossa eterna Vanusa, artista de primeira grandeza, que nem sempre teve seu talento e coragem reconhecidos.
Mulher a frente de seu tempo, e por isso mesmo, muitas vezes pagou o preco da solidão.

Unknown disse...

Lembro quando a Vanusa cantou essa música em 1973 . Eu tinha dez anos a letra falava tudo de mim . Eu guardei essa música dentro de mim em algum lugar . Hoje depois de muitos anos ouvi essa música por acaso e me veio a lembrança da minha infância a força de superação que a música me dava , a vontade de ir em frente . Nossa essa música é um hino. Cantada pela Vanusa mexe com o coração da gente . Ela quando cantava a música fluía de dentro dela , era como ela cantasse com a alma .

Unknown disse...

sem palavras musica perfeita

BAIANO COM H disse...

"Eu quero sair, eu quero falar, eu quero ensinar meu vizinho a cantar nas manhãs de setembro"
Eis um verso de otimismo supremo. Remete ao desejo do autor(a) de lavar para o seu semelhante o que há de bom, de melhor. As manhãs de setembro seria uma metáfora da beleza da vida. Somente um ser muito conectado com o sagrado deseja dividir as manhãs de setembro com seu vizinho.