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31 janeiro 2010

31. Ouça

Reza a história que Maysa teve as primeiras aulas de violão com Sílvio Caldas. Basta ouvir Maysa cantando "Ouça", composição dela, para perceber que a escola passional de Sílvio tem lugar cativo na voz da musa dos olhos verdes. Mas é a interpretação de Sílvio Caldas, o seresteiro do Brasil, para a canção da pupila que merece aqui uma leitura.
A voz de Sílvio Caldas - a voz morena da cidade - invadiu a fase moderna da canção brasileira, conservando os alongamentos vocálicos e a harmonia orquestral, erudita, cheia de força nos pulmões.
No disco Grandes sucessos com Sílvio Caldas (1974), o caboclinho querido se propõe a passar em revista a história da canção popular brasileira, interpretando compositores de diversas gerações.
Além de mostrar os caminhos côncavos e convexos do tempo, já que agora é o professor quem aprende com a aluna, "Ouça" encontra na voz de Sílvio Caldas o instrumento mais exato para cantar o amor rasgado, o coração sangrando, de um sujeito cansado de investir em uma relação sem a força (e o alimento sustentador) da reciprocidade.
O sujeito, através da voz de Sílvio, expõe sua dor: equaliza sua desmesurada entrega à paixão infrutífera. Aflito e angustiado, ele dá adeus e sofre: chama o outro à realidade. Ou seja, não dá mais para segurar: quando não há troca (via dupla), quando o amor vacila, só resta uma palavra adeus.
A pegada seresteira de Sílvio Caldas, para uma canção ultra passional quanto "Ouça", corta o coração de qualquer um: atinge em cheio as vibras da emoção de um ouvinte em mesmo estado. Sílvio ensina como alguém de alma carente e melancólica se expressa; interpreta o recado que passa em revista um amor que não criou raízes no outro. O passado (feliz) não foi o bastante para convencer quanto o futuro poderia ser bem grande para os amantes.
Mas agora chega, ouça, vão ficar apenas as lembranças - basta um outro cabeludo aparecer na rua, como diz o sujeito de "Detalhes". Até porque, se os costumes falam de coisas e fatos antigos, quando o outro perceber o quanto é triste perder um amor, talvez entenda o recado agora cantado: "vai lembrar que um dia existiu um alguém que só carinho pediu".

***

Ouça
(Maysa)

Ouça, vá viver
Sua vida com outro bem
Hoje eu já cansei
De pra você não ser ninguém

O passado não foi o bastante
Pra lhe convencer
Que o futuro seria bem grande
Só eu e você

Quando a lembrança
Com você for morar
E bem baixinho
De saudade você chorar

Vai lembrar que um dia existiu
Um alguém que só carinho pediu
E você fez questão de não dar
Fez questão de negar

30 janeiro 2010

30. Muito romântico

No livro Eu não sou cachorro não: Música popular cafona e ditadura militar, o historiador Paulo Cesar de Araújo observa que a canção "Muito romântico" rebate à patrulha ideológica que reinava na década de 70. Feita para Roberto Carlos (que a gravou em 1977, "Muito romântico", reflete a atitude de Caetano Veloso em "defesa do artista e de seu modo de ser, contra aqueles que tentam botar rédeas e trilhos no seu caminho” (palavras do compositor).
Paulo Cesar pinça os versos “nenhuma força virá me fazer calar / faço no tempo soar minha sílaba”, como exemplo disso. E, de fato, a mensagem da letra, cantada por Roberto Carlos (rei do "alienado" , , ) teria um forte significado para o momento, em que o artista precisava estar engajado com questões políticas. Portanto, não havia ninguém melhor para cantar tais palavras (exóticas).
O romantismo a que o título se refere fica por conta da vontade do sujeito da canção em"querer um acorde perfeito e maior, com todo mundo podendo brilhar num cântico". A liberdade utópica.
Os versos da terceira estrofe ecoam os versos de "Força estranha" (também feita por Caetano para Roberto), principalmente quando estes dizem: "Por isso uma força me leva a cantar". Ou seja, o impulso deve ser de canto e não de silêncio repressivo.
Roberto deu à canção "Muito romântico" uma interpretação de balada romântica, enquanto Caetano (no disco Muito, 1978) imprimiu uma força mais apocalíptica. De todo modo, ambas deixam claro que repressão é um papo que não deu (não dá).

***

Muito romântico

(Caetano Veloso)

Não tenho nada com isso, nem vem falar
Eu não consigo entender sua lógica
Minha palavra cantada pode espantar
E a seus ouvidos parecer exótica

Mas acontece que não posso me deixar
Levar por um papo que já não deu
Acho que nada restou pra guardar ou lembrar
Do muito ou pouco que houve entre você e eu

Nenhuma força virá me fazer calar
Faço no tempo soar minha sílaba
Canto somente o que pede pra se cantar
Sou o que soa, eu não douro pílula

Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior
Com todo mundo podendo brilhar num cântico
Canto somente o que não pode mais se calar
Noutras palavras, sou muito romântico

29 janeiro 2010

29. Aquarela

A estrutura toda rimada e ritmada desta longuíssima canção (ou seria deste poema musicado?), de Toquinho, Fabrizio, Morra e Vinicius de Moraes, oferece beleza ao todo poético e demonstra o cuidado estético dos autores.
O título não poderia ser mais apropriado. Se na técnica de pintura em aquarela os pigmentos são dissolvidos em água, nesta canção lançada por Toquinho em 1983 - no disco Aquarela - as cores são agrupadas, e diluídas, a cargo da imaginação do ouvinte: "Basta imaginar".
Toquinho se tornou mestre neste modo de compor: buscando estimular a imaginação do ouvinte. Não é à toa que suas canções embalam as crianças. Vale registrar que, para a minha geração, fica difícil desvincular esta canção da famosa propaganda da Faber Castell (1983): que dava imagens aos versos da letra.
A letra articula imagens plasmadas por um narrador que canta enquanto faz (e vice-versa) sua aquarela. Enquanto a complexa melodia embala a magia sedutora do encantamento visual, em uma harmonia perfeita e comovente.
Cada situação é detalhadamente burilada com cores exatas e imagens corretas. O passeio proposto pelo sujeito da canção é curtido pelo ouvinte com um mergulho no mar da ilusão (real: nossa tradição é empirista e o sujeito investe nisso) que a arte proporciona.
O sujeito recupera a noção de experiência. A linguagem (o canto) é espaço da experiência, sem atingir o "cerne" dela: contar (cantar) é viver. "Aquarela" suspende o perigo e apresenta um tempo/espaço das delícias e isso afeta o ouvinte.
O objeto, substituído no título por "aquarela", é, de fato, a vida. A vida (a estrada percorrida por todos: aquele espaço pintado e habitado pelo ouvinte, durante a execusão da canção) é cantada em sua profusão de cores e possibilidades.
"O fim dela (da vida) ninguém sabe bem ao certo onde vai dar". O sujeito enfatiza o percurso que investe no meio, no acaso, em detrimento do fim. A única certeza é: um dia ela (a vida) descolorirá.

***

Aquarela
(Toquinho - Fabrizio - Morra - Vinicius de Moraes)

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo.
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva,
E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva.

Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel,
Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu.
Vai voando, contornando a imensa curva Norte e Sul,
Vou com ela, viajando, Havai, Pequim ou Istambul.
Pinto um barco a vela branco, navegando, é tanto céu e mar num beijo azul.

Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená.
Tudo em volta colorindo, com suas luzes a piscar.
Basta imaginar e ele está partindo, sereno, indo,
E se a gente quiser ele vai pousar.

Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida
Com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida.
De uma América a outra consigo passar num segundo,
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo.

Um menino caminha e caminhando chega no muro
E ali logo em frente, a esperar pela gente, o futuro está.
E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar,
Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar.
Sem pedir licença muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar.

Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá.
O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar.
Vamos todos numa linda passarela
De uma aquarela que um dia, enfim, descolorirá.

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo (que descolorirá).
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo (que descolorirá).
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo (que descolorirá).

28 janeiro 2010

28. Disfarça e chora

Com um excelente conjunto de músicos e composições que teriam várias gravações futuras, Cartola (1974) é um disco referencial para a história da nossa canção.
O acompanhamento melódico cadenciado de "Disfarça e chora" parece ir contra aquilo que sugere a letra. Ora, porque chorar se o samba está rolando? Mas é justo deste "contraste" que brota a beleza do momento, afinal "a tristeza é senhora, desde que o samba é samba".
Não é nada fácil disfarçar uma perda (amorosa, ou não), mas o sujeito (malandro), sugere que, como vem raiando o dia e o sambista não gosta e se lamenta da chegada do sol (afinal, assim, "as morenas vão logo embora"), o outro deve aproveitar esse lamento e "fazer de conta" que está chorando por causa da aurora. Não há momento mais certo!
A voz de Cartola (com o "r" dobrado, típico); os breves, mas pontuais, alongamentos vocálicos (que fazem o ouvinte sentir o langor de quem chora); a concisão da mensagem na letra; e o balanço da melodia são primorosos.

***

Disfarça e chora (Cartola / Dalmo Castelo)

Chora, disfarça e chora
Aproveita a voz do lamento
Que já vem a aurora
A pessoa que tanto queria
Antes mesmo de raiar o dia
Deixou o ensaio por outra
Oh! triste senhora
Disfarça e chora
Todo o pranto tem hora
E eu vejo seu pranto cair
No momento mais certo
Olhar, gostar só de longe
Não faz ninguém chegar perto
E o seu pranto oh! Triste senhora
Vai molhar o deserto

27 janeiro 2010

27. Tempo de estio

Para Eduardo Diniz

"Trovoou truz, dava vento. E chuvas que minha língua lambeu. Nelas mais não falo. Mas, quando estiou o tempo, de vez, não sei se foi melhor: porque bateu de começo a fim dos Gerais um calor terrível", diz Riobaldo a certa altura de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.
Estio é a estação (ou período) intermediaria à primavera (brisa e chuva) e ao outono, ou seja, o verão (estiagem ou período de seca). Na canção "Tempo de estio", de Caetano Veloso, do disco Muito (1978), o sujeito joga com os significantes da palavra estio, a fim de plasmar um estado-de-si.
É no tempo de estio que as meninas (quentes: carne dura) do Rio de Janeiro, objetos do querer do sujeito da canção, surgem como promessas de felicidade. Alias, não é a toa que a palavra felicidade é citada na letra da canção. Diferente da alegria-instante, a felicidade quer durar. Dura: supera, soma e equaliza as alegrias e as dores todas para se constituir.
Anos mais tarde, em parceria com Jorge Mautner, Caetano Veloso compôs "Tarado" que, de certo modo, amplia a cena de "Tempo de estio", ao dizer: "Gosto de ficar na praia deitado com a cabeça no travesseiro de areia, olhando coxas gostosas por todo lado, das mais lindas garotas, também das mais feias, porque são todas gostosas e sereias pro meu olhar de supremo tarado".
Esta postura diante da paisagem do Rio trás a preguiça (ficar deitado), que é reforçada pela melodia (ritmada, porém sem desvios bruscos) da canção "Tempo de estio". Preguiça diante da beleza da cidade (e de suas meninas), coração do sujeito.
O querer (comer / mamar / preguiça / querer / sonhar) é condensado e personificado. It's rainning women: Solanges, Leilas, Flávias, Patrícias. Esta chuva chove no tempo de estio. Interessante é perceber, a título de exemplos da verve poética do sujeito de Caetano que: "sol" está em "Solange"; e "mar" está em "Marina" - proliferando os signos do verão na cidade da beleza das garotas de Ipanema.

***

Tempo de estio
(Caetano Veloso)

Quero comer
Quero mamar
Quero preguiça
Quero querer
Quero sonhar
Felicidade

É o amor
É o calor
A cor da vida
É o verão
Meu coração
É a cidade

Rio, eu quero
suas meninas

O Rio está cheio de Solanges e Leilas
Flávias e Patrícias e Sônias e Malenas
Anas e Marinas e Lúcias e Terezas
Glórias e Denises e luz eterna Vera

Rio, tempo de estio
Eu quero suas meninas

26 janeiro 2010

26. O que será

Lançada por Chico Buarque em 1976, para a trilha sonora do filme Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, a canção "O que será" recebeu uma contundente e passional interpretação da cantora Simone, no ano seguinte.
De fato, a canção já rendeu algumas boas interpretações, sempre investindo na interioridade do sujeito que fala. A propósito, há mais de uma versão para a letra de "O que será". No livro Histórias de canção: Chico Buarque, Wagner homem reúne as três com seus subtítulos "Abertura", "À flor da pele" e "À flor da terra".
Em 2008, o trompetista alemão Till Bronner reuniu um belo repertório no disco inteiramente dedicado ao Brasil: Rio. Entre os convidados brasileiros aparecem Milton Nascimento, Sergio Mendes, Luciana Souza e Vanessa da Mata.
Coube a Vanessa cantar, de modo elegante e voz bem colocada, "O que será (à flor da terra)". Sem a densidade dramática das gravações anteriores, a canção envereda pelo embalo gostoso da melodia jazzística, mas com um q de bolero. Este arranjo híbrido dá novas direções à letra.
A delicadeza da voz de Vanessa da Mata encontra na suavidade do trompete de Bronner o parceiro perfeito para cantar o enigma do sujeito: a pergunta sem resposta, eternamente e desde sempre cantada pelos poetas mais delirantes, jurada pelos profetas embriagados e que vive nas ideias dos amantes.
O sujeito canta a irresistibilidade disso: daquilo "que todos os avisos não vão evitar"; de algo tão sagrado e tão profano, tão intensamente leve e arrebatador - suspensor do juízo; tão esperado e tão temido por todos. Mas o que será isto sem nome ou figura que nos comove?
O sujeito dá pistas: está na natureza, está no dia-a-dia das meretrizes. Só cabe a ele circular (espalhar metáforas ao redor) esta coisa neutra e abstrata. A ele também é negado o acesso direto a isso sem decência e sem censura que, ao longo da canção, vai invadindo o ouvinte: impregnando pele e terra de desejo.

***

O que será
(Chico Buarque)

O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza será, que será
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem concerto nem nunca terá
O que não tem tamanho

O que será que será
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está nas fantasias dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será, que será
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido

O que será que será
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo padre eterno, que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo

25 janeiro 2010

25. Cara valente

A mimosa pudica é uma das chamadas "plantas sensitivas". São aquelas plantas que respondem ao toque estrangeiro fechando as folhas, como defesa natural. Este movimento é chamado de Sismonastia.
Assim como a mimosa pudica, o cara valente da canção gravada por Maria Rita (no disco Maria Rita, 2003) parece avesso ao extímulo externo, com a desculpa de se proteger e ser feliz sozinho.
O sujeito da canção, porém, observa que tudo não passa de uma máscara de alguém que, por algum motivo, não quer tocar na vida: não quer afetar, nem ser afetado. Agindo, assim, apenas como doador de sentido ao canto do sujeito de "Cara valente", de Marcelo Camelo.
O fato é que ele "desaprendeu a dirigir" a própria vida. Ou seja, ele sabia e algo interrompeu o fluxo dos acontecimentos. O cara valente (aliás, uma sutiu e terna evocação do João Valentão caymminiano) hoje, deixa sua vida ser cantada, sem ônus, pelos outros.
No jogo de bem-me-quer e mal-me-quer, o cara acreditou ser possível obter a verdade absoluta, a certeza do caminho. Negou o amor, na busca fracassada da essência: endureceu, corpo e "alma"; virou valente contra si mesmo.
Como na vida não há certezas (profundidades e superfícies se equivalem) a ser (per)seguidas, ele sofre por ter perdido o amor, além de ter investido em estradas que não deram em nada.
Ficamos (nós: ouvintes) sabendo, ou, pelo menos, confabulando, sobre isso através do canto do sujeito, ou seja, de um outro, mas que tenta validar seu canto dizendo que o que é cantado vem da fala do cara valente: "ele não é feliz, sempre diz que é do tipo cara valente". Ou seja, temos uma tradução da tradução dos sentimentos do cara.
O sujeito da canção, mudando o direcionamento de sua mensagem, em um procedimento que faz a canção ter, no mínimo, dois destinos (o ouvinte e o próprio cara valente), pede ao cara que renove a fé na dúvida: no imprevizível que dá vida à vida. E entenda que o mundo pode até ser feito de mágoas, mas a "alegria é a prova dos nove", como disse Oswald de Andrade.
Esta leitura se amplia quando ouvimos a interpretação de Maria Rita. A cantora usa a sátira prosódica - entoação provocante do riso maroto - para mover o outro do atual estado psíquico.

***

Cara valente (Marcelo Camelo)

Não, ele não vai mais dobrar
Pode até se acostumar
Ele vai viver sozinho
Desaprendeu a dividir
Foi escolher o mal me quer
Entre o amor de uma mulher
E as certezas do caminho
E ele não pode se entregar
E agora vai ter de pagar
Com o coração, olha lá
Ele não é feliz
Sempre diz
Que é do tipo cara valente
Mas veja só
A gente sabe
Esse humor é coisa de um rapaz
Que sem ter proteção
Foi se esconder atrás
Da cara de vilão
Então não faz assim rapaz
Não bota esse cartaz
A gente não cai não
Ele não é nada
Olha essa cara amarrada
É só um jeito de viver na pior
Ele não é nada
Olha essa cara amarrada
É só um jeito de viver nesse mundo de mágoas

24. Um índio

Há quem diga que Doces Bárbaros (1976) foi o último suspiro da Tropicália, enquanto movimento. O fato é que, a turma formada por Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Gilberto Gil implodiu a questão da identidade nacional ao incorporar as imagens míticas de cunho nacionalista do brasileiro.
A canção "Um índio", de Caetano Veloso, cantada com o vigor da intérprete de "Cárcara", com a retomada do regionalismo como matéria para se pensar o Brasil, por dentro, em contraste e união com uma melodia algo telúrica amplia os elementos da estética romântica e utópica proposta pelo doces bárbaros.
A sequência de assonâncias, proliferação de significantes, com o som da vogal "i" - Ali, Peri, Lee, Ghandi - fortalece o significado que o texto, sozinho, não deixa perceber: a força do que estar por vir: do índio que virá.
Este índio messiânico evoca a ideia da pureza original e física, mas condensa também em si as genealogias das religiões primordiais: indígenas, Taoísmo, Islamismo, Candomblé e Hinduísmo. Tamanha potência de vida é larva que cobrirá tudo e expurgará todos os males, exatamente porque não negará o humano demasiado humano, pelo contrário.
Importa lembrar, além desta arrebatadora interpretação da abelha rainha, a versão que um indefectível Ney Matogrosso deu à canção, para um clipe exibido na TV: Ney se monta, com luvas de longas unhas prateadas e uma exuberante máscara futurista, incorporando (recebendo: sendo o cavalo) o índio revolucionário (doce bárbaro) que diz SIM à vida; que guarda o óbvio segredo da felicidade.
Não é fácil lidar com o óbvio. Muito mais complexo é trabalha-lo poeticamente. O sujeito da canção mostra isso ao apresentar uma híbrida proliferação de signos que circulam a obviedade, mas não a entrega: deixa ao ouvinte a conclusão final. Ou melhor, espera que o índio pouse no coração do hemisfério sul, na América colonizada, para que a epifania aconteça.

***

Um índio
(Caetano Veloso)

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio

23 janeiro 2010

23. Não chore mais

"Não chore mais" é um clássico, lançado por Gilberto Gil no disco Realce (1979), em uma versão trilingue: a letra em português e inglês e a melodia jamaicana, mas com tudo junto e misturado no melhor estilo tropicalista.
"Não chore mais" canta as perdas (da liberdade de sentar na grama do Aterro sob o sol) e ganhos (a maturidade de saber que tudo vai dar pé) diante das intempéries vida; de uma existência regida por (senhores do poder) hipócritas que tolhem (perpetram a docilização dos corpos) as várias e diversas formas de viver.
O campo do simbólico é bastante forte. Cada referência (significante) pode (e tem) várias leituras: um dos motivos para a canção se tornar atemporal, ao mesmo tempo em que registra o complexo período de repressão no Brasil, com seus olhos de reprovação à liberdade.
De fato, o sujeito canta para ninar o destinatário. Sereia e mãe, ele compõe uma canção em que presente, passado e futuro se entrelaçam: suspende o juízo (tempo e espaço) do outro a fim de fazê-lo parar de chorar e ter fé.
Chama à atenção, nesta versão de Gil para "No Woman, No Cry", de B. Vincent, a "mudança melódica" dentro da canção. Se tudo começa de forma lenta (passional), enquanto o sujeito tenta consolar o outro (a woman), recorrendo às lembranças boas do passado; mais adiante o sujeito percebe que a melhor forma de conseguir o que deseja é tentando mudar a perspectiva na qual o outro está centrado e acelera o andamento: "Eu sei a barra de viver (...) tudo, tudo vai dá pé".
Ou seja, importa, para a voz que canta, mostrar a alegria de se estar vivo: mesmo diante da dor. Daí aparecer o reggae como resposta às lágrimas; a dança em detrimento à estagnação. Pois, como sabemos, o reggae, em primeira instância, aparece como símbolo de resistência e de enfrentamento contra a crueldade da existência.
O sujeito da canção transmite sabedoria, sem falsos didatismos: mostra como compor a canção de afirmação da vida. Aqui aparece a verve do cancionista Gilberto Gil, que apresenta como equilibrar o que está sendo dito (o texto, o discurso) com a melodia, provocando no ouvinte os estados (físicos e psíquicos) desejados: de mobilização - "os pés, de manhã, pisar o chão".

***

Não chore mais
(Gilberto Gil)

Bem que eu me lembro
Da gente sentado ali
Na grama do aterro, sob o sol
Ob-observando hipócritas
Disfarçados, rodando ao redor

Amigos presos
Amigos sumindo assim
Pra nunca mais
Tais recordações
Retratos do mal em si
Melhor é deixar prá trás

Não, não chore mais
Não, não chore mais

Bem que eu me lembro
Da gente sentado ali
Na grama do aterro, sob o céu
Ob-observando estrelas
Junto à fogueirinha de papel
Quentar o frio
Requentar o pão
E comer com você
Os pés, de manhã, pisar o chão
Eu sei a barra de viver

Mas se Deus quiser
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé

Não, não chore mais
Não, não chore mais

22 janeiro 2010

22. Onde você mora

Mais do que servir como exemplo para aulas de Português - devido ao uso de "onde", aonde", "Daonde" - essa canção marcou a trajetória da banda Cidade negra. Lançada no disco Sobre todas as forças (1994), "Onde você mora", de Nando Reis e Marisa Monte, continua embalando muitas festas.
Aliás o reggae tropical-brasileiro deve muito à sonoridade do Cidade Negra, banda que, ano após ano, reinventando-se, como a própria história da canção popular, instaura alegria e consciência com os extratos da negritude, principalmente jamaicana.
Juntos, e com um som que une Negril a Floripa, os meninos (erês) da banda, de fato, impuseram uma nova forma de cantar o reggae: mais alegre (com a consciência leve) e menos panfletário (a vida ensina e o tempo traz o tom). Sem perder de vista o pensamento (a reflexão existencial) que acompanha o ritmo importado, mas, ao mesmo tempo, tão nosso.
"Onde você mora", com um sujeito que se arrepende de ter deixado o outro, ter negado alguém que só carinho pediu, reflete bem o amor eternizado pelo canto (de retorno) da vida e da esperança, que nasce como um girassol amarelo no coração de quem faz a guerra.
O som solar do Cidade negra é o médium tranquilo e preciso para levar a mensagem direto ao seu destinatário. Um amor que não se pede, que não se mede, que não se repete merece a tal melodia luminosa.
E a certeza da volta é tão grande, a força criada pelo acompanhamento melódico é tão imperativa e convincente, que o sujeito não tem dúvidas: "cê vai chegar em casa eu quero abrir a porta".
No entanto, ainda na espera, há um sutil movimento cíclico, um leve desespero, afinal o sujeito não sabe onde o outro estar: é aqui que a canção cumpre seu papel: chegar onde o sujeito não vai, porque não sabe onde é.

***

Onde você mora
(Nando Reis / Marisa Monte)

Amor igual ao teu
Eu nunca mais terei
Amor que eu nunca vi igual
Que eu nunca mais verei

Amor que não se mede
Amor que não se pede
Que não se repete

Cê vai chegar em casa
Eu quero abrir a porta
Daonde você mora
Aonde você foi morar

Não quero estar de fora
Aonde está você
Eu tive que ir embora
Mesmo querendo ficar
Agora eu sei

Eu sei que eu fui embora
Agora eu quero você
De volta pra mim

21 janeiro 2010

21. O vento

A metáfora dos líquidos tem auxiliado no entendimento das relações afetivas contemporâneas. Pautadas em um tempo-espaço que escorrega entre os dedos (mutável e cambiante), as relações líquidas parecem ser a motivação mais sensível das canções do Los Hermanos.
Há sempre um sujeito desalentado e melancólico: saudoso de algo não vivido, mas que já se insinua como falta, ausência. Há sempre um sujeito diante da solidão humana e existencial. Mesmo quando há amor, e sempre há amor em algum nível, ele vem atravessado pelo interdito.
A canção "O vento", de Rodrigo Amarante, lançada no disco 4 (2005), não é diferente. Acompanhada por uma melodia triste, mas com respirações quentes, a letra parece dialogar com "Vento no litoral". O sujeito quer "descansar, chegar até a praia e ver se o vento ainda esta forte e vai ser bom subir nas pedras".
O vento na pele despoleta o pensar. Dito de outro modo, sentir o vento na carne é perceber o tempo: torná-lo presença material. Ora, na impossibilidade disso, só resta ao sujeito cantar a vida, pois só é possível estocar os sonhos e seus encantos, já que todo o jeito não se fixa.
"Sei que faço isso pra esquecer. Eu deixo a onda me acertar e o vento vai levando tudo embora". Para o sujeito de "O vento", o tempo traz e leva. Diante do reino das sereias - cantantes por excelência, o sujeito responde à voz que vem do mar.
O mar, que naturalmente estimula a reflexão, aqui é adensador do desassossego do sujeito da canção. Ou seja, diante da fartura das possibilidades (iconizada pelo infinito) o ser se recolhe, sem conseguir respostas para as inquietações interiores: por exemplo, por que o amor chega ao fim?
Ele deixa escapar um segredo: "se a gente já não sabe mais rir um do outro, meu bem, então o que resta é chorar. Perder a capacidade de "rir de si mesmo", algo imposto pelo malfadado, porque mal entendido e praticado, "politicamente correto", arrebenta (choque entre a água e a rocha) qualquer impulso mais positivo: reativo.
Sobra o desejo de que o amor possa renascer, depois, "bento de lágrimas", já que "a cada milágrimas sai um milagre", como Alice Ruiz e Itamar Assumpção entenderam.

***

O vento
(Rodrigo Amarante)

posso ouvir o vento passar
assistir à onda bater
mas o estrago que faz
a vida é curta pra ver
eu pensei que quando eu morrer
vou acordar para o tempo
e para o tempo parar
um século, um mês
três vidas e mais
um passo
pra trás?
por que
será?
vou pensar

como pode alguém sonhar
o que é impossível saber
não te dizer o que eu penso
já é pensar em dizer
e isso, eu vi, o vento leva
não sei mas sinto que é como sonhar
que o esforço pra lembrar
é a vontade de esquecer
e isso por quê?
(diz mais)

se a gente já não sabe mais
rir um do outro, meu bem
então o que resta é chorar
e talvez
se tem que durar
vem renascido o amor
bento de lágrimas
um século, três,
se as vidas atrás são parte de nós
e como será?

o vento vai dizer lento o que virá
e se chover demais a gente vai saber,
claro de um trovão,
se alguém depois sorrir em paz
(só de encontrar)

20 janeiro 2010

20. Olhos coloridos

"Olhos coloridos", de Macau, além de ser, sempre, a canção abre-alas de Sandra de Sá, é uma grande celebração da mistura étnica brasileira. Muito pela interpretação fervorosa e alegre (da alegria de ser o que é) de Sandra.
Desde que ela gravou esta canção swingada de batida black music pela primeira, no disco Sandra Sá 2 (1982), a magia de uma mensagem afirmativa e denunciadora de uma verdade coletiva se renova pelo tema sempre atual: a beleza e a riqueza de ser (todo brasileiro é) sarará crioulo.
De fato, este mote da mestiçagem, da hibridação, vira e mexe, retorna como mote para nossos compositores, basta lembrar a título de amostragem, "Inclassificáveis", de Arnaldo Antunes, com os versos "aqui somos mestiços mulatos cafuzos pardos mamelucos sararás crilouros guaranisseis e judárabes"; ou "Lourinha bombril", de Diego Blanco y Bahiano (na versão de Herbert Vianna):" Essa crioula tem o olho azul, essa lourinha tem cabelo bombril, aquela índia tem sotaque do Sul, essa mulata é da cor do Brasil".
Por aqui, negros embranqueceram, brancos enegreceram, como captam os versos acima citados. Por isso, o riso de desprezo e zombaria do outro, igual a mim, brasileiro, não tem sentido: é apenas sintoma da hipocrisia de alguém que não se conhece; não admite sua história; não despertou para a felicidade de assumir a diversidade das cores de seus olhos.
Como Antonio Risério observa no livro A utopia brasileira e os movimentos negros: "mestiçagem não significa abolição de diferenças, contradições, conflitos, confrontos, antagonismos. Mestiçagem não implica fim do racismo, da violência, da crueldade. E a melhor prova disso é o Brasil. Um país informal, gregário e convivial, sim, mas também o país onde (...) o apartheid se sobrepõe brutalmente ao padê". Para mais adiante apontar: "salvo raríssimas exceções, nossos negros são todos mestiços".
E aqui vale destacar a importância de um verso como "meu cabelo enrolado, todos querem imitar", pois retomam e criticam o chamado "black is beautiful", americano mas profundamente disseminado por aqui, que só esconde as crises internas de nossa identidade. Para Risério, "ninguém cria, com sucesso espetacular, uma bandeira como "black is beautiful", se não contar com um pé na realidade e outro na carência".
A singularidade do canto de Sandra de Sá fica por conta da personalidade forte no palco e da voz potente extremamente condizente com o que é dito. A carioquice (Rio "purgatório da beleza e do caos") de Sandra dá aos versos "meu cabelo enrolado, todos querem imitar" e "a verdade é que você tem sangue crioulo" conotações imprevistas e ampliação de sentidos. Tudo aliado ao balanço e à malandra ironia exigidos pela canção.

***

Olhos coloridos
(Macau)

Os meus olhos coloridos
Me fazem refletir
Eu estou sempre na minha
E não posso mais fugir

Meu cabelo enrolado
Todos querem imitar
Eles estão baratinado
Também querem enrolar

Você ri da minha roupa
Você ri do meu cabelo
Você ri da minha pele
Você ri do meu sorriso

A verdade é que você
(Todo brasileiro tem)
Tem sangue crioulo
Tem cabelo duro
Sarará, sarará
Sarará, sarará
Sarará crioulo

19 janeiro 2010

19. Rosa de Hiroshima

O grupo Secos e molhados revolucionou (e redefiniu) a performance dos intérpretes de canção no Brasil. Com uma atitude pós-tudo (desbundamento total) os integrantes colocaram a androginia no centro das discussões estéticas.
Além disso, chamaram à cena a hibridação brasileira e latino-americana. Causaram pane nas meias verdades que nos constituem. Já no nome do grupo - Secos e molhados - encontramos referência ao arcaico, tendo em vista que tal expressão servia (serve ainda hoje) para designar pequenas barracas (que vendem de um tudo) nas feiras livres.
Já a contraparte moderna fica por conta das letras com linguagem coloquial e nonsense e das situações (desconcertantes para muitos) que a presença física dos rapazes causavam nas certezas do "macho adulto branco sempre no comando".
Mas o desbunde, ao contrário do que se pensou (talvez ainda se pense) não representou alienação social e/ou artística. A gravação de "Rosa de Hiroshima", de Vinicius de Moraes e Gerson Conrad, aponta isso.
Gravada no primeiro (e antológico) disco - Secos e Molhados (1973) -, a canção, um poema musicado, estruturada por nove dísticos (estrofes com dois versos cada), é um libelo que estimula o ouvinte, para além do rebolado do corpo, ao pensamento, não menos libertário e libertador do que a proposta do grupo. No caso, sobre a barbárie da guerra. Fluida, mas com marcas imprevistas, a rosa se evapora: pega e mata.
Aqui, o uso do dístico como recurso poético, agrega exatamente a ideia de que juntos (em dois) é mais fácil pensar (a canção pede isso três vezes) e não esquecer as consequências da estupidez da "rosa radioativa".
A mensagem é direta e a beleza fica por conta da interpretação em ritmo de oração (súplica) de um Ney Matogrosso (sujeito e objeto não identificado) embriagado de vontade de potência. A voz que canta é a de um ser místico vindo dos rincões do Brasil, a fim alertar e despertar consciências. A voz que canta é a voz da liberdade do desejo de vida. E vida em abundância.

***

Rosa de Hiroshima
(Vinícius de Moraes / Gerson Conrad)

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas

Pensem nas meninas
Cegas inexatas

Pensem nas mulheres
Rotas alteradas

Pensem nas feridas
Como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária

A rosa radioativa
Estúpida e inválida

A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica

Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada

18 janeiro 2010

18. Malemolência

Ouvir Céu cantando "Malemolência", de Alec Haiat e Céu, é uma delícia. Ouço e sinto que nesta canção está o embrião das canções que a cantora executa. Sofisticada, sem pedantismo, Céu dá voz às coisas simples da vida: imprime beleza ao cotidiano.
Com um pé no eletrônico (sons tomados do afrobeat, por exemplo) e o outro na tradição vocal (sons orgânicos vindos, especialmente, do samba), Céu tem construído uma carreira que ainda terá muitos e felizes desdobramentos.
De modo geral, consciente de que o Brasil é um país híbrido, Céu dá continuidade (aprofunda, amplia e imprime sua marca) ao que o cantor Otto fez ao lançar o disco Samba pra burro (1998). Ali, Otto abriu as possibilidades para a fundição da música eletrônica com os sons nacionais, ou melhor, permitiu que os sons locais reverberassem no universal.
Aliás, não por acaso, Céu participa do disco de Otto - Certas manhãs acordei de sonhos intranquilos (2009) - cantando um certo "leite derramado sobre a natureza morta": despoletador de sonhos.
"Malemolência" está no primeiro disco da cantora: CéU (2005) - Sim o C e o U estão grafados em maiúsculas na capa que traz uma foto solar e primaveril da cantora. A canção, com excelentes arranjos de cordas e samples, é uma boa amostra da mistura sonora proposta no disco e na obra de Céu, como afirmei acima.
Não há uma "mistura pela mistura", mas um procedimento consciente dos contatos sonoros, que, por sua vez, tenta figurativizar o menino bonito que vai até o sujeito da canção e inspira o canto.
O objetivo é criar o espaço (a roda de samba: a malemolência) necessário à dança do menino. O swingue da melodia presentifica um "menino bonito", cheio de malemolência (brasileiro; malandro: "tensão flutuante do Rio"), que, basta olhar, tira o ar do sujeito da canção que, entre suspiros e ais lança o canto do deslumbramento: a rede.

***

Malemolência
(Alec Haiat / Céu)

Veio até mim
Quem deixou
Me olhar assim
Não pediu
Minha permissão
Não pude evitar
Tirou meu ar
Fiquei sem chão

Menino bonito
Menino bonito, ai
Ai menino bonito
Menino bonito, ai

É tudo o que eu posso
Lhe adiantar
O que é um beijo
Se eu posso ter o teu olhar?
Cai na dança, cai
Vem pra roda
Da Malemolência

17 janeiro 2010

17. Dindi

Para o semioticista Luiz Tatit, o elemento passional de uma canção pode ser percebido pela sustentação das vogais, ou seja, pelo alongamento da duração da pronúncia de uma vogal. Este recurso (da passionalização) é usado pelo cancionista para pontuar e demonstrar estados (psíquicos e afetivos) tais como: solidão, frustração, abandono, ciúme, mas também amor, entrega, paixão.
A intenção é fazer com que o ouvinte "sinta" o conflito experimentado pelo sujeito da canção no momento do canto. As canções românticas (mais lentas e introspectivas) são o melhor exemplo desta modalidade. Nelas há sempre um sujeito cantando o amor (bem sucedido ou não). O intérprete prolonga as vogais no movimento de plasmar as tensões acústica e física correspondentes à tensão psíquica.
Aquilo que é dito precisa roçar a sensibilidade do ouvinte naquilo que há de mais comum entre quem canta e quem ouve: as vibras da paixão; a abertura (humana) ao enamoramento e à, consequente, ou não, frustração.
Noutras palavras, valorizando as vogais, o intérprete anula os estímulos somáticos produzidos pelos ataques das consoantes e induz o corpo do ouvinte ao repouso necessário para que ele (o ouvinte) possa introjetar a mensagem da canção.
Maysa é uma grande intérprete deste tipo de canção. É difícil ouvi-la e não ficar extático (e estasiado) diante da mensagem que ela canta. Cantora do período pré-aspirina, ou seja, quando sentir e demonstrar dor fazia parte do show, Maysa, a bem dizer, punha o coração na voz.
A singela "Dindi", de Tom Jobim, Aloysio de Oliveira e Ray Gilbert, foi gravada no disco Voltei (1959). A canção apresenta um sujeito que não tem certeza de quase absolutamente nada: nem do movimento das nuvens, das folhas, das águas. Só há uma certeza: o desejo de permanecer junto do outro (amado), que é tão belo que nem sequer existe.
O sujeito começa com um "plano aberto": desenha a paisagem ao redor, inventa seu cenário, para depois dizer de si, através do desejo pelo outro. Aliás, o sujeito é puro desejo. Ele, ao mesmo tempo, é ninguém e é o canto, a sereia, da enigmática personagem Dindi, que, por sua vez, dá ao sujeito o mote para a vida.
Maysa vai fundo na interpretação passional: arrebenta a fossa do sujeito abandonado no seu desconforto pela não consumação do amor. Dindi, que não existe para além do campo de desejo do sujeito, está no canto do sujeito, é o canto. Perder Dindi é perde o motor de cantar a vida.
"Dindi" é o canto do medo da perda. A circularidade do uso do vocativo "Dindi" faz o ouvinte se embriagar (no canto de um bar qualquer) junto com o ouvinte e amar, e sofrer, junto.

***

Dindi
(Antonio Carlos Jobim / Aloysio de Oliveira / Ray Gilbert)

Céu, tão grande é o céu
E bandos de nuvens que passam ligeiras
Prá onde elas vão
Ah, eu não sei, não sei
E o vento que fala nas folhas
Contando as histórias
Que são de ninguém
Mas que são minhas
E de você também

Ah, Dindi
Se soubesses do bem que eu te quero
O mundo seria, Dindi, tudo, Dindi
Lindo Dindi

Ah, Dindi
Se um dia você for embora me leva contigo, Dindi
Fica, Dindi, olha Dindi

E as águas deste rio aonde vão eu não sei
A minha vida inteira esperei, esperei
Por você, Dindi
Que é a coisa mais linda que existe
Você não existe, Dindi
Olha, Dindi
Adivinha, Dindi
Deixa, Dindi
Que eu te adore, Dindi

16 janeiro 2010

16. Menino das laranjas

À primeira vista, o que chama à atenção na canção "Menino das laranjas", de Theo de Barros, gravada por Elis Regina no disco Samba eu canto assim (1965), é a convivência das três vozes que se fazem ouvir na letra: a do sujeito que observa o menino vendendo laranjas para sustentar a mãe solteira; a da mãe que manda o filho vender as laranjas; e a voz do próprio menino gritando e oferecendo sua mercadoria.
As justaposições (entradas e saídas de cena) de cada voz mais parecem a montagem de um filme que é projetado aos olhos do ouvinte. Elis consegue jogar com as três vozes da canção, sem perder a dramaticidade da cena apresentada.
O canto e o gesto vocal de Elis Regina (cria de Ângela Maria que, por sua vez, é cria de Dalva de Oliveira) são impecáveis e precisos durante a troca de personagens: respirações, pausas, acelerações e desacelerações, apoiados pelo arranjo melódico, dão beleza à vida cruel de um menino que, tendo sua infância minada, vende laranjas para sustentar a si e à família.
Vem a pergunta: quem se acaba é a feira; são as laranjas; ou é o próprio menino? O engajamento social da canção fica evidente na complexividade da ignorância da mãe que, mesmo sem ter condições de sustentar os rebentos, engravida.
São muitos os "meninos da laranja", que apanham (da vida e da mãe) se não trouxerem o necessário para casa. Mas, se de fato só damos aquilo que temos, esta mãe (lavadeira das roupas do povo da cidade) não pode dar outra coisa ao filho senão o adensamento da crueldade da existência.
Cabe ao sujeito, cantor, ao narrar a história deste menino (que é muitos), denunciar e iluminar a vida do outro, pois, enquanto durar a canção, os ouvintes estarão atentos à verdade do garoto. A canção instiga o desassossego em quem ouve e, quem dera, incute desejos de mudança no quadro social.

***

Menino das laranjas
(Theo de Barros)

Menino que vai pra feira
Vender sua laranja até se acabar
Filho de mãe solteira
Cuja ignorância tem que sustentar

É madrugada, vai sentindo frio
Porque se o cesto não voltar vazio
A mãe já arranja um outro pra laranja
Esse filho vai ter que apanhar

Compra laranja menino e vai pra feira

Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor

Lá, no morro, a gente acorda cedo
E é só trabalhar
E comida é pouca e muita roupa
Que a cidade manda pra lavar

De madrugada, ele, menino, acorda cedo
Tentando encontrar um pouco pra poder viver até crescer
E a vida melhorar

15 janeiro 2010

15. Futuros amantes

"Futuros amantes", de Chico Buarque, fala do amor adiado, que não tem pressa para ser consumado e consumido; do amor maduro, longe das urgências do amor juvenil. Mas fala também, de viés, da paciência como necessidade para os acontecimentos da vida.
Lançada no disco Paratodos (1993) - que tem também a regravação da bela "Sobre todas as coisas", de 1982 - "Futuros amantes" investe na mistura de um arranjo de cordas com uma batida bossa nova e ajuda a, calmamente (sem pressa), e a voz terna de Chico ajuda nisso, transmitir a sensação de certeza e segurança no amor que é imortal.
Expressões e palavras pouco usuais em canções dão o tom buarquiano, tais como: "Posta-restante", que é a correspondência que fica esperando alguém ir buscá-la numa agência dos Correios; e "Escafandristas", o mergulhador-explorador que faz uso do escafandro. Tudo se conjuga para falar da raridade do amor.
Importa lembrar que "escafandro" é palavra que aparece em "Rapaz de capricho", de Noel Rosa, de 1933: "Perguntei ao escafandro se o mar é mais profundo que as ideias do malandro. Chico Buarque, cria noelrosiana, recupera o capricho vocabular do poeta da Vila.
Se há amor, os amantes sabem permanecer esperando o momento exato para surgir e/ou ser descoberto. Este amor cantado pelo sujeito de "Futuros amantes" superará o tempo e chegará ao futuro: quando o Rio já seja uma "cidade submersa", os escafandristas descobrirão os resíduos desse amor atemporal, que servirá de objeto de pesquisa, e de uso, devido à sua estranheza, diante das novas (ou nem tanto) expressões do amor.
Afinal, "amores serão sempre amáveis" e qualquer maneira de amor vale o canto; ou: "a flor do amor tem muitos nomes", como Riobaldo diz em Grande sertão: veredas.
Sem dúvida, "Futuros amantes", com sua poesia, mentiras, segredos e retratos, é uma bela declaração do amor romântico. Daquele tipo de amor que é tão sutil e quente que fica esquecido num fundo de armário, mas, de modo imperceptível, dando suporte à nossa existência.

***

Futuros amantes
(Chico Buarque)

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

14 janeiro 2010

14. O sal da terra

Não é mais nenhum segredo o fato de que tratamos muito mal o nosso planeta. A sustentabilidade nunca foi tão necessária e urgente. Óbvio, há muita gente fazendo uso do "discurso verde" para se promover e tal, mas verdade é que as consequências climáticas já se fazem presentes em nosso dia-a-dia.
Lançada em 1981, no disco Contos da lua vaga, a canção "O sal da terra", de Beto Guedes, com sua mensagem de rápido entendimento, alerta para isso: já passa da hora de recriar o paraíso. Hino ecológico, a canção mostra que o sal da terra não é outro senão nós mesmos: os indivíduos. Somos os responsáveis por darmos o ponto certo às ofertas da terra.
Os versos ecológicos e de desejo aglutinador não deixam dúvidas de que é através do respeito às forças que sustentam a vida (o amor, o tempo, a felicidade) que se conseguirá banir a opressão. Sem pieguices, e sem alarmes, o ouvinte é convidado a construir a vida nova.
A certa altura, a canção remete, pela reminiscência, o ouvinte aos versos de "Felicidade", de Antonio Almeida e João De Barro. Afinal, "Para que tanta ambição, tanta vaidade? Procurar uma estrela perdida. Quase sempre o que nos dá felicidade são as coisas mais simples da vida".
Há, de fato, uma crítica velada às conquistas da modernidade (da industrialização): à melhoria da vida material em detrimento da vida espiritual, interior: da paz do indivíduo consigo mesmo. Nunca como antes nos sentimos tão sozinhos, desamparados e carentes.
Enfim, "O sal da terra" fala sobre o modo simples de viver e deixar o tempo seguir seu curso de vida e morte: hoje, há um desespero na manutenção a quaisquer custos da vida física; munimo-nos dos diversos dispositivos de segurança e proteção, enquanto o sujeito da canção quer viver mais duzentos anos, como mensagem, como canto, como vida mais real.
Diante dos apelos diários, a mudança de perspectiva é difícil mas, com "um mais um" sendo mais que dois, de repente a gente consegue, como o herói grego Héracles, ganhar as maçãs de ouro da imortalidade; ou, ao menos, morder a maçã da árvore do conhecimento.

***

O sal da terra
(Beto Guedes / Ronaldo Bastos)

Anda, quero te dizer nenhum segredo
Falo nesse chão da nossa casa
Vem que tá na hora de arrumar

Tempo, quero viver mais duzentos anos
Quero não ferir meu semelhante
Nem por isso quero me ferir

Vamos precisar de todo mundo
Pra banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova

Vamos precisar de muito amor
A felicidade mora ao lado
E quem não é tolo pode ver

A paz na Terra, amor
O pé na terra
A paz na Terra, amor
O sal da Terra

És o mais bonito dos planetas
Tão te maltratando por dinheiro
Tu que é a nave nossa irmã

Canta, leva tua vida em harmonia
E nos alimenta com seus frutos
Tu que é do homem a maçã

Vamos precisar de todo mundo
Um mais um é sempre mais que dois
Pra melhor juntar as nossas forças
É só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora
Para merecer quem vem depois
Deixa nascer o amor
Deixa fluir o amor
Deixa crescer o amor
Deixa viver o amor
(O sal da terra)

13 janeiro 2010

13. Gente

A regra é clara, e a mensagem da canção “Gente”, de Caetano Veloso, guardada no disco Bicho (1977), também: “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. Há uma crítica à situação social, econômica e política que empurra a população à mendicância.
Mas há também, e a melodia de pulso acelerado ajuda nisso, um convite à revolução: a fazer da da crueldade existencial mais um antídoto (motor) que nos empurra (enquanto gente) para a afirmação da vida. Ou seja, "a vida não tá certa nem errada, aguarda apenas nossa decisão", como diz o poema "Tudo ou nada", de Itamar Assumpção e Alice Ruiz.
Sereia, cuja missão é individualizar o ouvinte pedido no mar de dores e ilusões, o sujeito da canção "Gente", cita uma porção de pessoas, na tentativa de resgatá-los do mar. Caetano inclui o próprio nome entre os nomes (alguns reconhecidos pelo grande público, outros mais particulares), fazendo do sujeito de "Gente" um pescador de sonhos.
O cancionista reforça a gênese brilhante de todo indivíduo, ao assinar a capa do disco substituindo o “t”, de seu nome, por uma estrela, prática que persistirá depois, criando uma imagem persuasiva convincente para a expressão: “Gente é pra brilhar”.
Aliás, o “bicho” da capa, possivelmente “A grande borboleta”, título de uma outra canção do disco, é a pura imagem do objeto híbrido. Feita do “ponto de encontro” entre o sol e a lua – como dois bicos de seios que se tocam e tensionam o erotismo do contato, com a própria seta tesa, no meio, intensificando tal leitura – a grande borboleta aponta o ouvinte para o conteúdo do disco, repleto de sons e letras que nos remetem às referências de nossos antepassados: índios e negros.
Temos em "Gente", ainda, uma bonita e funcional intertextualidade com a canção “Two Naira fifty combo”, também de Caetano, quando na segunda estrofe desta ouvimos: "o certo é ser gente linda e dançar, dançar, dançar. O certo é fazendo música".
Ou seja, “gente é pra brilhar", dançar, cantar, fazendo música, compondo a própria canção que não nega a dor, mas afirma a alegria: viver com o corpo todo, à cada instante. E o verso final recolhe a intenção da canção, pois ao afirmar que gente é o “espelho da vida, doce mistério” o sujeito estabelece que, sendo "o doce mistério da vida" (título da versão de Alberto Ribeiro, para a canção "Ah! Sweet mystery of life", de Victor Herbert, que ficou famosa na voz de Maria Bethânia), a gente reflete e refrata as tristezas e as alegrias de viver.

***

Gente
(Caetano Veloso)

Gente olha pro céu
Gente quer saber o um
Gente é o lugar de se perguntar o um
Das estrelas se perguntarem se tantas são
Cada estrela se espanta à própria explosão

Gente é muito bom
Gente deve ser o bom
Tem de se cuidar, de se respeitar o bom
Está certo dizer que estrelas estão no olhar
De alguém que o amor te elegeu pra amar

Marina, Bethânia, Dolores, Renata, Leilinha, Suzana, Dedé
Gente viva brilhando, estrelas na noite

Gente quer comer
Gente quer ser feliz
Gente quer respirar ar pelo nariz

12 janeiro 2010

12. Alegria, alegria

Foi com "Alegria, alegria" (guardada no disco Caetano Veloso, 1967) que Caetano Veloso começou a enfrentar os riscos de questionar os preconceitos do público dos Festivais da canção.
Caetano (no livro Verdade Tropical) escreve que o uso de “coca-cola” na canção foi “inaugural” e “marca histórica”, porém, o historiador Paulo Cesar de Araújo (no livro Eu não sou cachorro não) argumenta que já em 1961 Baby Santiago compôs o rock “Adivinhão”, com os versos: “À noite ela falta à aula / pra ficar comigo e tomar Coca-cola”.
De todo modo, "Alegria, alegria" inaugura possibilidades e abre perspectivas impenssáveis até então.
"Alegria, alegria", para além da citação direta do existencialismo de Jean-Paul Sartre (quando este diz, no livro As palavras, que o que ele (Sartre) ama em sua loucura é que ela sempre o protegeu contra as seduções da elite: “nunca me julguei feliz proprietário de um talento: minha única preocupação era salvar-me – nada nas mãos, nada nos bolsos – pelo trabalho e pela fé”); e da retomada paródica do samba "Alegria" (1938), de Assis Valente e Durval Maia, imprime uma alegria consciente e um gosto pelo gostar que persevera, afirmativamente, diante da vida fazendo o sujeito “seguir vivendo amor”.
Com o verbo "ir" sempre incultando ação e movimento, contra o vento, o sujeito da canção se opõe, por exemplo, à canção "Pra não dizer que não falei das flores", de Geraldo Vandré, quando esta diz: "Caminhando e cantando / E seguindo a canção".
Ao contrário, o sujeito de "Alegria, alegria" não segue a canção, "vai": complexifica e reverte o sistema - cria um canto para si, compõe sua história efetiva, singular. E estilhaça a competência receptiva do ouvinte "bem comportado", gerando o desconforto que impulssiona o outro a "ir junto".
Ao invés de "amores na mente", o sujeito "tem o peito cheio de amores vãos". Por que não? Caminhar ao abstrato é ser universal: desejo íntimo do sujeito, que narra seu caminhar, sua relação ilícita com o mundo.
Assim, ele, consolado pela canção que compõe para si, e que pensa em cantar na televisão, ou seja, dar de presente às massas, fica mais distante da morte, a cada nova imagem anexada ao canto; a cada nova especulação do perigo: afirmação do risco, de viver.

***

Alegria, alegria (Caetano Veloso)

Caminhando contra o vento
Sem lenço sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes pernas bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou

Por que não? Por que não?

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço sem documento
Eu vou

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do Brasil

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou

Sem lenço sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor
Eu vou

Por que não? Por que não?

11 janeiro 2010

11. Não vou ficar

O poder de um rei escolhido pela massa é inegável. Seja impulsionado pela força mediática por trás do mito, seja pela voz para onde convergiam vários estilos, seja pelos preferidos temas passionais, Roberto Carlos é luz e som.
Bem antes de só cantar "o bem e o bem", Roberto, que começou cantando (como ainda canta lindamente) Bossa Nova, fez parte de um dos momentos decisivos da linha evolutiva da canção popular brasileira, ao fazer uso dos instrumentos elétricos e ao incorporar os modos norte americanos de fazer música com o corpo todo: imprimindo modas e gostos irredutíveis nos jovens de então.
Gravar "Não vou ficar", de Tim Maia, no disco Roberto Carlos (1969), aponta para um cantor antenado com as novas perspectivas da canção no Brasil: os elementos da chamada soul music. Na verdade, como Nelson Motta conta no livro Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia, Roberto conhecia Tim desde os tempos pré fama, na Tijuca. Muito embora, como sabemos, tenham tomado caminhos diversos rumo ao sucesso.
Voltando à canção, "Não vou ficar", na voz de Roberto, teve uma recepção calorosa e merecida: é, sem dúvida, uma gravação exemplar. Os arranjos de sopro, a melodia pesada e os gritos de Roberto são o tom correto para dar voz a um sujeito "irado" e cansado da relação (amorosa?).
Roberto dá o grave, o agudo, o eco, o retorno, tudo que a canção pede. Tim Maia compôs uma canção cuja mensagem precisa ser transmitida como se ela estivesse sendo elaborada no momento da enunciação. Metacanção (canção que fala do processo de compor: do viver calado ao resolver falar), "Não vou ficar" exige um frescor do instante. Talvez daí, aliada à sinceridade do sujeito, venha a sensação de canção sempre nova.

***

Não vou ficar
(Tim Maia)

Há muito tempo eu vivi calado
Mas agora resolvi falar
Chegou a hora, tem que ser agora
E com você não posso mais ficar
Não vou ficar, não
Não posso mais ficar, não

Toda verdade deve ser falada
E não vale nada se enganar
Não tem mais jeito, tudo está desfeito
E com você não posso mais ficar
Não vou ficar, não
Não posso mais ficar, não

Pensando bem
Não vale a pena
Ficar tentando em vão
O nosso amor não tem mais condição, não

Por isso resolvi agora
Lhe deixar de fora do meu coração
Com você não dá mais certo e ficar sozinho
É minha solução, é solução sim
Não tem mais solução, não

10 janeiro 2010

10. Magra

"Magra", de Lenine e Ivan Santos, é um desenho sonoro-vocal da musa, da mulher mais desejada: "tudo nela chama". O sujeito canta as filigranas da beleza da mulher: compõe a canção que dá beleza à mulher; entre tantas outras mulheres, ela é singularizada no canto, na voz do cancionista.
"Magra", do disco Labiata (2008), é uma canção, pelos percursos visuais proporcionados, para lá de sensual. Uma cantada estilosa e provocante: o sujeito mais parece um zangão, dando voltas em torno da flor, deliciando-se com a suculência dela.
Esta leitura, aliás, é bem possível, ainda mais quando, aliado àquilo que é dito, assistimos ao clipe da canção, com a câmera sobrevoando uma orquídea: "como a lua rodando entre as estrelas".
Assim, o sujeito rouba a beleza da flor para melhor plasmar a beleza da mulher. "Magra", com suas palavras-mote e versos-glosa, cria uma moça "toda ela bela" aos olhos de quem ouve a canção.
A proliferação de imagens e características resulta (a partir da recolha de significantes feita nos versos-refrão "Magra, leve, calma / Toda ela bela / Tudo nela chama") na condensação deslumbrante da mulher iluminada pelo canto.
Ao final, fica a dúvida se o sujeito, de fato, ver esta mulher (olhos de corça) ou se ele sonha com ela (cura o escuro). Mas isso já não tem a menor importância pois, já tendo sido cantada, a mulher existe e é motivo da (trans)piração do sujeito e, por consequência, do ouvinte: ela finge que voa e ele "sonho que é minha".

***

Magra
(Lenine / Ivan Santos)

Moça
Pernas de pinça
Alta
Corpo de lança
Magra
Olhos de corça
Leve
Toda cortiça
Passa
Como que nua
Calma
Finge que voa
Brasa
Chama na areia
Bela
Como eu queria

Magra, leve, calma
Toda ela bela
Tudo nela chama

Segue
Enquanto suspiro
Toda
Cor de tempero
Cheira
Um cheiro tão raro
Clara
Cura o escuro
Ela
Braços de linha
Dengo
Cheio de manha
Durmo
E peço que venha
Acordo
E sonho que é minha

Magra, leve, calma
Toda ela bela
Tudo nela chama

09 janeiro 2010

9. Lobo bobo

O ano de 2009 ficará marcado pela reabilitação de Wilson Simonal na história de nossa canção. O documentário Wilson Simonal: ninguém sabe o duro que dei veio devolver ao público a obra de um dos melhores cantores que já tivemos; e cuja qualidade pode hoje ser conferida por qualquer um.
O melhor da restituição de Simonal, ao posto que sempre lhe pertenceu, não é a discussão política (tão estéril de sentido quanto a condenação do artista) e sim a reabertura dos arquivos, os relançamentos, a (re)entrada de suas músicas nas programações das rádios, a regravação de seus sucessos.
E o resultado foi o melhor possível. Simonal toca hoje como um artista vivo que estivesse trabalhando suas músicas agora: tamanho é o frescor de suas performances. E isso tem permitido às novas gerações perceberem que sim, o Brasil também é um país de cantores, e muito bons.
A canção "Lobo bobo", de Carlos Imperial e Ronaldo Bôscoli, gravada no disco A nova dimensão do samba, de 1964, permite ao ouvinte captar um bocado da malandragem de Simonal: de fato, a canção parece ter sido feita para sua voz: de um gingado e malemolência que Simonal dominava como poucos.
A letra da canção, e a melodia com um doce balanço ajuda na composição da cena, mostra uma situação cotidiana: um indivíduo que, sem nenhum vintém, a fim de conquistar uma garota, aparentemente bem mais nova que ele, faz uso da malandragem (ou da pilantragem, como Simonal preferia) para atingir seu objetivo.
Aqui, o sujeito da canção recupera a história infantil, mas cheia de segundas interpretações, da inocente "Chapeuzinho Vermelho", que passa a vida a fugir das investidas de um lobo mal que quer lhe "devorar".
Os gestos vocais de Simonal (manejos, pausas e ênfases) figurativizam os bons dobrados que o tal lobo precisa engendrar para agradar a garota. Na canção, o sujeito aponta que o "lobo canta, pede, promete tudo, até amor e diz que fraco de lobo é ver um chapeuzinho de maiô". A chapeuzinho, sapeca e mais malandra, passa a usar e abusar dos sentimentos do lobo, agora, bobo.

***

Lobo bobo
(Carlos Imperial / Ronaldo Bôscoli)

Era uma vez um lobo mau
que resolveu jantar alguém
estava sem vintem
mas arriscou
e logo se estrepou
um chapeuzinho de maio
ouviu buzina e não parou
mas lobo mau insiste
faz cara de triste
mas chapeuzinho ouviu
os conselhos da vovó
dizer que não pra lobo
que com lobo não sai só

lobo canta, pede,
promete tudo, até amor
e diz que fraco de lobo
é ver um chapeuzinho de maiô

chapeuzinho percebeu
que o lobo mau se derreteu
pra vez vocês que lobo
também faz papel de bobo

só posso lhe dizer
chapeuzinho agora traz
um lobo na coleira que
não janta nunca mais

08 janeiro 2010

8. Noite do prazer

"Noite do prazer", de Claudio Zoli, Paulo Zdanowski e Arnaldo Brandão, é uma dessas canções que marcam épocas: períodos cíclicos. Basta o verão chegar e pronto "Noite do prazer" invade rádios, praias e imaginações, emoldurando acontecimentos. É um dos temas oficiais (e intuitivos) da estação de mar e sol.
Com clima gostoso e swingado, cheia de tesão no ar, toda se ardendo para o ouvinte, a canção foi lançada pela banda Brylho, em 1983. Desde então, já foi regravada algumas vezes, e na maioria por um de seus autores, um dos desbravadores do soul no Brasil: Claudio Zoli.
A letra é bem direta, fala das badalações de uma noite quente de verão, em que o objetivo do sujeito é sentir "a energia que emana de todo prazer". Mais solar e tropical impossível.
Brindes ao destino, conspirações astrológicas e (certa) vontade de que os encontros continuem "depois que a festa acabar" desenham a atmosfera sensual da canção. A força que o sujeito sente por dentro está nas filigranas da canção. Ou seja, ele imprime no canto a potência de "caça" que lhe vai no íntimo.
O sujeito é um militante do desejo: do indivíduo que se joga, sem pecado e sem juízo, à conquista, na busca dos benefícios do prazer. Ele guarda em si os instintos do flâneur e do voyeur: transita e olha, sente e traduz, no canto, a energia que emana dos corpos das personagens que compõem a cena.
A canção fotografa as imagens permissivas que só uma noite (do prazer), quente como as noites quentes do verão, pode oferecer. A citação do blues ("tocando B. B. King sem parar") ajuda a montar o quadro, pois figurativiza o ritmo dos corpos em direção ao roçar dos prazeres.
As experiências das possibilidades e manifestações físicas do prazer ficam sugeridas, invadem o campo do imaginário do ouvinte que, convidado, invade a festa e beija a vida.

***

Noite do prazer
(Claudio Zoli / Paulo Zdanowski / Arnaldo Brandão)

A noite vai ser boa
De tudo vai rolar
De certo que as pessoas
Querem se conhecer
Olham e se beijam
Numa festa genial

A madrugada, a vitrola
Rolando um blues
Tocando B. B. King sem parar
Sinto por dentro uma força
Vibrando uma luz
A energia que emana
De todo prazer

Prazer em estar contigo
Um brinde ao destino
Será que o meu signo
Tem a ver com o seu?
Vem ficar comigo
Depois que a festa acabar

07 janeiro 2010

7. Tudo certo

Estar ao lado de quem se ama é festa da vontade de ser. Portanto, o contrário disso, a distância, a separação, é causa de desassossego e de perda-de-si. Tudo está certo, o sol brilha no pino do meio dia, dentro do indivíduo em conjunção amorosa.
É assim, prenhe de desejo de ser, que o sujeito da canção "Tudo certo", de Dudu Falcão, faz o chamado, canta o outro: imprime a importância de ter alguém a quem cantar e, de viés, ser cantado, dando sentido a existência.
A letra pede calma diante da urgência das relações líquidas contemporâneas. Parece que para ele apaixonar-se e desapaixonar-se são processos mais complexos e merecedores de melhor atenção e respeito ao tempo exato de durar.
Frente à velocidade da roda viva da vida, o sujeito parece cansado e em busca de experiências mais tranquilas, sem atropelos de etapas e os (típicos e malfadados) desgastes na alma. Ou seja, apesar da suposta liberdade afetiva, não foi descoberto ainda um mecanismo que elimine os efeitos colaterias, na alma.
Interessante atentar para o fato de que "alma" está dentro de "calma", ou seja, o sujeito da canção aponta que para se atingir a "alma" é necessário certo equilíbrio (a calma cantada), para assim ficar "tudo certo" entre ele (o sujeito) e o outro (objeto de seu desejo).
Há ainda a explicitação do prazer do sujeito com a proximidade física do outro, em oposição às relações virtuais que caracterizam nosso tempo. E, mesmo vendo mais do que deveria, afinal sempre vemos mais do que devemos, esperamos demais do outro (da relação amorosa), ele acredita na possibilidade do encontro feliz: do amor leve e duradouro, intenso.
A interpretação da Luiza Possi, no disco Bons ventos sempre chegam (2009), dá o tom certo de uma baladinha romântica e a mensagem passa agradável, alcançando o seu destino e atingindo seu objetivo: ser um convite ao amor.

***

Tudo certo
(Dudu Falcão)

Calma, tenha calma
Minha previsão do tempo
Diz que hoje não vai chover
Alma, minha alma
Voa leve pelo vento
E me leva até você

Você me faz bem
Quando chega perto
Com esse seu sorriso aberto
Muda o meu olhar
Meu jeito de falar
Junto de você fica tudo bem, tudo certo

Sei, eu sei que vejo mais do que eu deveria
Mas é que eu sou mesmo assim
Sinto, eu sinto tanto a sua falta todo dia
Volta e traz você pra mim
Quem mandou você passar pelo meu caminho
Quantas vezes eu vou ter que repetir
Quantas vezes?

06 janeiro 2010

6. Na massa

"Na massa", de Arnaldo Antunes e Davi Moraes, poderia ser mais uma "canção de lista", pois enumera uma série de estilos, atitudes e comportamentos. Porém, o acabamento final dado pelos compositores lhe oferece uma beleza singular.
Importa dizer que as chamadas list song, termo usado para pensar algumas canções de Cole Porter, fazem sucesso por aqui. Seja porque "circula" o objeto da canção com metáforas e metonímias que tentam defini-lo, seja porque estabelece, com isso, a investigação de certa identidade ao objeto: e, como sabemos, ter identidade clara é sonho (impossível) do indivíduo colonizado.
Ou seja, há um sutil desejo de, ao enumerar as delícias da coisa, chamar a atenção para ela: seja para um lugar, seja para uma personagem. Assim, desde "No tabuleiro da baiana" (1936), de Ary Barroso e Luiz Barbosa até "Não é proibido" (2008), de Marisa Monte, Dadi e Seu Jorge, exemplos não faltam. E, no centro disso, claro, não podemos esquecer das list songs cartões postais da Bahia de Dorival Caymmi.
"Na massa", gravada por Arnaldo Antunes, em 2001, no disco Paradeiro, e por Davi Moraes, em 2002, no disco Papo macaco, estabelece uma rápida empatia com o ouvinte, pela letra lúdica: fusão de elementos díspares, mas complementares, diante da proposta do sujeito da canção. Além da convidativa levada pop e rock da melodia.
O clima parece ser criado a partir de um sujeito posicionado no meio de uma multidão (na praça, no carnaval?) e que com o "olho livre", oswaldiano, capta a diversidade nos foliões ao redor, além das múltiplas possibilidades de "se mostrar" e curtir a festa.
A mensagem, depois da profusão de acessórios e vestimentas - compondo uma figura algo sensual que mostra a pele pelo "rasgo da calça", sob o sol de domingo - é a de que não importa a máscara: o importante é "se jogar" e sumir na massa, se misturar.
Aqui, dois aspectos se fundem, tanto a "massa" no que, segundo Lucia Santaella (no livro Linguagens líquidas na era da mobilidade), diz respeito "à homogeneização da informação, veiculada pelos meios de massa, em uma faixa repertorial que é nivelada para um receptor médio abstrato", e, no carnaval, de rua, seria o trio elétrico a exercer tal função; quanto "massa" no sentido do rompimento na individuação, típico da festa dionisíaca.
O sujeito da canção desenha uma personagem de subjetividade escorregadia, em um corpo mutável, que absorve e esgarça a volaticidade das modas: blusa de abajur, manto de garrafa pet, tatuagem de chiclete (não fixa e de fácil remoção) e saia de safari.
Em 2009, Adriana Partimpim, heterônimo de Adriana Calcanhotto, ressurge com o disco Partimpim 2 e usa "Na massa" como símbolo do período em que montar e desmontar subjetividades é exercício prazeiroso e fundamental: a infância - era do carnaval, em que todo mundo pode tudo.
A versão da Partimpim para "Na massa" dá ênfase a outros instrumentos (de brinquedo), que intencificam o objetivo de criar uma atmosfera lúdica. E acerta em cheio!
De fato, "Na massa" é uma canção tão bacana e enigmática (a personagem permanece o tempo todo escondida, perdida atrás de alguma das máscaras cantadas) e tão bem construída (com suas sobreposições de imagens e volteios rítmicos) que não dá para não curtir todas as suas versões.

***

Na massa
(Arnaldo Antunes / Davi Moraes)

vai de mon amour
blusa de abajur
óculos escuro apaziguando o sol
no domingo a caminho da praça

óculos ray-ban
raio de tupã
no pulso pulseira,
no corpo collant
mostra a pele pelo rasgo da calça

pode ser de farda ou fralda
arrastando o véu da cauda
jóia de bijuteria
lantejoula e purpurina
manto de garrafa pet
tatuagem de chiclete
de coroa ou de cocar
pode se misturar

na massa
some na massa

sai de chafariz
bico de verniz
saia de safári sorriso de miss
camiseta de che guevara

plástico metal
árvore de natal
de biquíni xale bata ou avental
e uma pinta pintada na cara

pode vir de esporte ou gala
de uniforme com medalha
braço cheio de pacote
nada debaixo do short
derramando seu decote
gargantilha no cangote
segue a moda de ninguém
usa o que lhe convém

vai de my cherri
vai de mon amour
vai de bem-me-quer
vai do que vier

na massa
some na massa

anda de abadá
dança o bragadá
turbante importado
lá de Bagdá
fantasia de anjo sem asa

sola de pneu
todo mundo é eu
roupa de princesa
em pele de plebeu
no passeio de volta pra casa

passa de cabelo moicano
ou com lenço de cigano
méxico chapéu cabana
capacete de bacana
de sarongue ou de batina
tanga de miçanga fina
moda tem a sua só
passo de carimbó

na massa
some na massa