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06 abril 2010

96. Debaixo d'água

A introdução percussiva (algo baladinha de ninar) e um canto de sereia abrem e atravessam "Debaixo d'água", canção que Arnaldo Antunes gravou em Paradeiro (2001) e Maria Bethânia em Mar de Sophia (2006).
A melodia despoleta a mensagem de um paraíso líquido. Longe do caos da vida na superfície, o colorido, sem lamento e sem saber, sem perdão e sem percado (afinal um depende do outro para
existir), o fundo do mar (de sofia), de águas que lavam as mazelas do mundo, surge como estado de graça.
Porém (ah, porém), este ponto zero do ser resulta tão sufocante quanto o ar (poluído) e o sujeito precisa emergir para respirar. Ou seja, não há esfera de proteção isenta de ser explodida por pressões intrínsecas à condição humana. A serpente bíblica parece se metamorfosear a todo instante.
É debaixo d'água - dentro da barriga materna, nossa primeira esfera protetora - que o sujeito se forma. O estouro da bolsa é nosso primeiro contato com o ar; e nossa expulsão do paraíso. Ao longo da vida, passamos a criar e recriar bolhas de proteção, sempre frágeis e de curtíssima duração.
Se recolher para sempre, à escuridão do ventre (sereno confortável amado completo), de onde (talvez) não deveria nunca ter saído, eis o desejo (inconfesso) do ser.

***

Debaixo d'água (Arnaldo Antunes)

Debaixo d'água tudo era
mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água
se formando
como um feto
sereno confortável
amado completo
sem chão sem teto
sem contato com o ar

Mas tinha que respirar

Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

Debaixo d'água por encanto
sem sorriso e sem pranto
sem lamento e sem saber
o quanto esse momento
poderia durar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água ficaria
para sempre
ficaria contente
longe de toda gente
para sempre
no fundo do mar

Mas tinha que respirar

Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

Debaixo d'água
protegido salvo
fora de perigo aliviado
sem perdão e sem pecado
sem fome sem frio
sem medo
sem vontade de voltar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água tudo era
mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

Um comentário:

dudu disse...

É Leo nada mais propício para os dias de hoje aqui no RJ do que essa canção. Pena, que nem toda a beleza que existe Debaixo D'água pode ser cantada em relação ao nosso caos nesse momento. Mas, vale como uma alerta1
Abçs.