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29 abril 2010

119. A novidade

O sol nasce para todos, diz a voz popular, a questão é saber o que fazer com isso. Assim, cada qual alimenta seus desejos, suas taras e nóias de acordo com a necessidade premente.
Deste modo, enquanto para alguns uma sereia sacia a "alma", para outros ela enche a barriga. Seja como for, ela mata (morrendo) a fome de viver de quem lhe admira e se deslumbra com sua presença ali naquela praia, ali na areia.
Obviamente, "A novidade", com sua levada jamaicana (e correta passionalização no refrão), traz como percurso narrativo o tema das discrepâncias sociais e como tal dicotomia diz (canta) muito do que somos enquanto nação, povo e gente (de toda parte).
Gravada no disco Selvagem? (1986), "A novidade" canta os encantos (e o infortúnio), com concisão e sofisticação, daquela que é tomada, desde Homero, como o símbolo do canto de vida e morte. A sereia, cuja voz condensa o passado, o presente e o futuro de Ulisses, chegou até nós - sob várias interpretações - como exemplo da sedução que mata (nos vários sentidos do termo).
Ou seja, aquilo que se anuncia como novidade, que veio dar à praia, vindo do incomensurável e misterioso mar, pode acabar estraçalhado, estraçalhando-nos.
O estraçalhamento da sereia (objeto) põe a nu o esgarçamento e a arrebentação das tessituras internas do poeta e do esfomeado (sujeitos). E, mesmo despedaçada, a sereia atinge sua missão existencial: sufocar o sujeito nas águas da vaidade e da (des)memória de si.
A canção canta sobre o quanto podemos ser cruéis (Selvagem? Como indicia a capa do disco?) na ânsia de atender às nossas "vontades": O milagre se torna pesadelo, num piscar de olhos.

***

A novidade
(Gilberto Gil / Bi Ribeiro / Herbert Vianna / João Barone)

A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
Metade, o busto de uma deusa maia
Metade, um grande rabo de baleia

A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia

Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total

E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia

A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado

Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total

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