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30 dezembro 2010

364. Não enche

"Não enche", de Caetano Veloso, lançada no disco Livro (1997), é o canto do indivíduo que tenta se descolar da musa: romper a relação simbiótica, ouvida no backstage da canção, e que agora o sufoca. Ele percebe que se não destruir o outro ele será sempre par: e, no fundo, queremos ser ímpar, singular.
Ele canta a negação do outro a fim de encontrar uma história para si, independente da vida que construiu através do canto do outro. Ou seja, negando o outro, a vida do sujeito retorna para o sujeito, que quer viver, cantar e gozar com liberdade: desimpedido, bicho solto no mundo.
A canção reflete a tensão do sujeito que se rebela. É interessante perceber o requinte do sujeito: a oclusão proposital do nome da mulher, obliterada sob a riqueza vocabular e sua proliferação alucinante de adjetivos que circulam a musa amada e odiada.
Amada porque, como ele mesmo diz: "a melodia do meu samba põe você no lugar", ele deu axé a ela e a mantém "suspensa no ar", na canção, no canto; e odiada porque ela tornou-se a "sanguessuga, que só sabe sugar". As deslumbrantes assonâncias e aliterações figurativizam o gesto da musa que tanto incomoda o sujeito e que lhe leva a cantar.
Certa vez, Caetano ("um velho baiano") disse: "As minhas letras são todas autobiográficas. Até as que não são, são". Deixando de lado o jogo estético, esta afirmação ajuda-nos a entender o sujeito de "Não enche", quando este argumenta "o que eu herdei de minha gente e nunca posso perder", para logo adiante começar uma estrofe com a deliciosa expressão nordestina "Oxente". Aliás, a própria melodia samba-rock-axé intensifica isso.
O sujeito faz de seu canto um desconjuro: vai elencando, em capcioso caos, muito pela ira que lhe move, fragmentos de momentos e sentimentos. Ele desconstrói a relação dual: "eu vou viver sem você", arremata. E faz tudo isso com ludicidade e ênfase sensorial, envolvendo e tornando o ouvinte cúmplice. O sujeito usa as torções semânticas e a mistura melódica para a estesia do ouvinte. Ao final, estamos (nós: ouvintes) prontos para também odiar e deslindar-se desta senhora: dona do dom do sujeito cantor.
Vamos percebendo a mulher cantada por partes. Tonta pela profusão de eus desenhados no canto do sujeito, afinal ela "nunca quis ver, não vai querer, não quer ver", a musa-trepadeira parece desabar do salto: unhas negras quebradas e os castanhos lábios borrados de carmin. Mas tudo não passa de sugestão, ameaça. Ou não?
Seja como for, o sujeito assume o risco de enfrentar a musa - voz clarificada, "gritando: nada mais de nós!". Um gesto vertiginoso e de alto risco, pois, como Clarice Lispector escreveu: "Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro".

***

Não enche
(Caetano Veloso)

Me larga, não enche
Você não entende nada e eu não vou te fazer entender
Me encara de frente:
É que você nunca quis ver, não vai querer, não quer ver
Meu lado, meu jeito
O que eu herdei de minha gente e nunca posso perder
Me larga, não enche
Me deixa viver, me deixa viver, me deixa viver, me deixa viver

Cuidado, ô xente!
Está no meu querer poder fazer você desabar
Do salto, nem tente
Manter as coisas como estão porque não dá, não vai dar
Quadrada, demente
A melodia do meu samba põe você no lugar
Me larga, não enche
Me deixa cantar, me deixa cantar, me deixa cantar, me deixa cantar

Eu vou
Clarificar a minha voz
Gritando: nada mais de nós!
Mando meu bando anunciar:
Vou me livrar de você

Harpia, aranha
Sabedoria de rapina e de enredar, de enredar
Perua, piranha
Minha energia é que mantém você suspensa no ar
Pra rua! se manda
Sai do meu sangue, sanguessuga que só sabe sugar
Pirata, malandra
Me deixa gozar, me deixa gozar, me deixa gozar, me deixa gozar

Vagaba, vampira
O velho esquema desmorona desta vez pra valer
Tarada, mesquinha
Pensa que é a dona e eu lhe pergunto: quem lhe deu tanto axé?
À-toa, vadia
Começa uma outra história aqui na luz deste dia D:
Na boa, na minha
Eu vou viver dez
Eu vou viver cem
Eu vou viver mil
Eu vou viver sem você

17 comentários:

Fabiana Farias disse...

Tá chegando a hora1

Lis Braga disse...

Existe uma teoria de que Caetano fez essa música em um momento de fúria contra a mídia, com a qual ele sempre teve certo embate, afinal sempre exigem que ele seja o que era na época da ditadura e ele se recusa, afinal, o tempo passa, o sistema muda, as pessoas mudam, o mundo muda.
Mas suas análises são ótimas, textos excelentes. E o que o autor quer dizer, no fim das contas, é sempre uma incógnita, afinal, só ele sabe como e para quem escreveu, sob quais circunstâncias.
Um abraço e parabéns pelo trabalho, não conhecia, mas gostei muitíssimo!!

Lis Braga

ADEMAR AMANCIO disse...

Que música estranhamente inteligente,seu texto também é estranhamente inteligente,viu.

Anônimo disse...

O texto está sensacional
realmente adorei ler.
Parabéns!

Anônimo disse...

Ouvi dizer que essa música foi feita como um resposta a um comentário que a Sonia Braga fez num programa de TV sobre ele. Ela teria afirmado que ele era homossexual.
Caetano já foi apaixonado por Sonia nos idos de 70.

Alzira disse...

Nossa, estou em torpor, tudo muito demais!!!!!!!!!

Alzira disse...

Nossa, estou em torpor, tudo muito demais!!!!!!!!! Puta que pariu, tudo (tanto a letra da música quanto o comentário do autor da matéria) tudo é tão bem construído que me resta agradecer pela excelente apresentação, pela vibração que emana!!!!!!!!!!!!

mctrol disse...

Eu me lembro que esta música começou a aparecer justamente numa época em que a esposa do Caetano começou a se aproximar da Paula Burlamaqui.

Haviam muitas insinuações de que elas eram mais que amigas, por frequentarem o Posto 9 e estarem sempre juntas.

Numa entrevista para o Jornal do Comércio do Recife, em 1998, as duas comentaram sobre este assunto e a Burlamaqui, disse que sempre achou que esta música foi feita para a Paula Lavigne, na qual a esposa de Caetano respondeu que ele fez essa música para todas as mulheres, "para se libertar da figura dominadora da mulher, entendeu?"

Lucas disse...

Assistindo ao DVD "Acústico MTV" da banda Kid Abelha, nos extras, há um quiz sobre a banda e, uma das perguntas é sobre uma música que foi feita como uma resposta ao hit "Como eu quero". A resposta correta é a música "Não Enche", de Caetano. Achei interessante e até plausível, visto que a letra da música do Kid Abelha fala "longe do meu caminho cê via de mal a pior, vem que eu te ensino como ser bem melhor". Ao que Caetano já responde no primeiro verso de sua música: "Me larga, não enche, você não entende nada e eu não vou te fazer entender".
Se foi resposta ou não, gosto das duas músicas.

Anônimo disse...

A letra é chata, pedante e machista. Já os comentários são meia-boca, ficam tentando se esquivar dos defeitos da letra, dourar pílula.

Unknown disse...

Caetano é simplesmente genial !

ADEMAR AMANCIO disse...

Caraca,de novo passei por aqui.

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu acho que a letra é pra sua mulher(num rompante de raiva),é claro que ele não vai assumir.

João Junior disse...

Para mim, pouco importa quem inspirou Caetano a compor tão bela canção, mas a emoção transmitida por ele. A música nos transforma imediatamente em testemunhas oculares do momento em que um homem perde a razão, por está cansado de um relacionamento abusivo. Digo oculares, porque toda cena é monta em nossa mente.

Unknown disse...

Totalmente machista!

André Gally disse...

Vou mandar a real dessa música: ela foi feita para o vírus HIV. Ouçam novamente e percebam.

jacobkachmar disse...

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