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03 dezembro 2010

336. Feitio de oração

"Minha gente era triste amargurada. Inventou a batucada pra deixar de padecer (...) Quem samba tem alegria", diz o sujeito da canção "Alegria", de Assis Valente e Durval Maia. "A alegria é a prova dos nove": está registrado no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade.
A alegria vem, numa e noutra, de uma recusa a certa cruel nostalgia: ser alegre é resistir; aceitar as intempéries da existência e brincar com elas, fazê-las cúmplices da consciência-de-si. O sofrimento (a dor) deve ser entendido (digerido e incorporado) com alegria, pois ele faz parte da vida.
Cantamos e dançamos para deixar de padecer: cantando (batucando) criamos um estado (lugar) ficcional onde não há distinção entre os indivíduos. O samba, sendo o resultado disso, e sendo "pai do prazer e filho da dor", une senhores e escravos: liberta e arrasta para as ondas do mar sem fim (do êxtase físico). É na embriaguez promovida pelo samba que o indivíduo tem a sensação de participar da vida e da natureza de deus.
"O bom samba é uma forma de oração", diz o sujeito de "Samba da Bênção" de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Ou, como na canção de Noel Rosa e Vadico (primeira parceria dos dois), um "Feitio de oração".
Em "Feitio de oração", uma metacanção que canta (mostra) o motor (suporta uma paixão) que alimenta o gesto cancional do sujeito-compositor, ficam evidentes pelo menos duas coisas: "Sambar é chorar de alegria, é sorrir de nostalgia" e "O samba na realidade não vem do morro, nem lá da cidade".
O primeiro destaque já foi comentado acima, portanto é o segundo que merece algumas palavras: afinal, de onde vem o samba? onde ele nasce e se alimenta? Obviamente, sabemos de toda a mitologia genética do samba. Os mitemas são inúmeros e exercem força ainda hoje. Mas vale apontar aqui o espírito conciliador de Noel Rosa, pois de fato ele executa um gesto próprio do samba: o amálgama entre as culturas do morro e da cidade.
Aliás, o sujeito diz "lá da cidade", portanto, situando-se espacialmente no morro, berço do samba. Mas vai além e, eliminando fronteiras, borrando os limites como o próprio samba-em-si faz, o sujeito de "Feitio de oração" instaura o samba como potência incandescente e intrínseca de todos os indivíduos, pois "nasce do coração".
Vem daí a ressalva crucial: "Batuque é um privilégio. Ninguém aprende samba no colégio". Ou seja, samba nasce dentro e não fora do indivíduo: o samba é a manifestação de algo (paixão) que comove e percorre o indivíduo.
A interpretação da mulata maior, Elisete Cardoso, de 1957 guardada no disco A magnífica (1998), investe no pedido do sujeito da canção: canta "esta triste melodia" carregando na passionalidade, marcando o desenho melódico. Elisete sobe o morro e vai a Penha: sagrado - inflexão religiosa da inspiração; e profano - espaço da manufatura do samba. Ela arrasta um legião: ela é o samba: a voz do morro e da cidade unidos.

***

Feitio de oração
(Noel Rosa / Vadico)

Quem acha vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que, por infelicidade,
Meu pobre peito invade

Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia

Por isso agora lá na Penha
Vou mandar minha morena
Pra cantar com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba em feito de oração

O samba na realidade não vem do morro
Nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce do coração

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