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09 dezembro 2010

343. Com a boca no mundo

Um filme, ou um livro, ou uma canção, só começa quando termina. Explico: um filme, seu impacto em mim, só começa a se desenrolar no instante em que saio da sala escura, pois é neste momento que começo a perceber os resíduos que ficaram e a dar algum sentido (interno, pessoal e intransferível) àquilo que eu assisti "apenas" como espectador.
Com a literatura é um pouco diferente. As várias pausas na leitura, o cíclico abrir e fechar do livro, favorece uma digestão mais lenta (melhor?). Seja como for, só quando o livro termina é que ele começa a ser assimilado em mim. Pela crítica eu me aproximo do texto. A realidade que a ficção criou interfere na minha realidade. E eu, por minha vez, atravesso a ficção com minha crítica, fingindo a situação empírica.
A leitura convoca às interferências: preenchem a ideia de leitura. E eu me torno o autor da obra, pois a leitura é a permanência da humanidade.
Mas e a canção? Aquela ouvida despretenciosamente, no rádio, enquanto vamos para o trabalho, ou enquanto lavamos a louça, ou enquanto engomamos a calça? A brevidade da canção realiza a vida porque ali, assim como no filme ou no livro, a vida não precisa existir.
Breves, as canções são porções mágicas que (ao equilibrar palavra e melodia: itens básicos para situar o indivíduo no mundo) nos avisam que nós somos algo feito para ser cantado; que a arte é mentira, mas através da mentira eu chego à (minha) verdade.
O sujeito de "Com a boca no mundo", de Lee Marcucci, Luiz Sérgio e Rita Lee, canta mesmo com a desaprovação dos caretas. Canta porque, apesar "deles", o sujeito precisa cindir o que a vida ordinária oferece como verdade. "Eles", os mantenedores da moral e das tradições objetivamente forjadas, não aceitam que a vida só existe porque ela ignora o que é. Eis uma das funções do sujeito-cantor: mostrar que as palavras cantadas guardam sentidos, mas não guardam significação.
É por isso que o sujeito termina a canção dizendo: "Essa melodia não acaba quando eu resolver parar de cantar". Ou seja, o que ele quis dizer já disse, cabe ao ouvinte ouvir. Ao invés de morrer, única saída encontrada por "eles", o sujeito canta: causa pane nas certezas pré-datadas. Aliás, toda verdade é pré-datada, a ficção sabe e investe nisso: e se defende, deixando claro que é ficção, contra qualquer imposição do "real".
A versão de Ney Matogrosso (Vivo, 2000) é bem mais enfática do que a versão feita pela própria Rita Lee. Enquanto ela investia no costumeiro (gracioso e ácido) humor, Ney investe na cara dura: bota a boca no mundo; figurativiza a fome de vontade de viver do sujeito.
A comparação com o tico-tico é bastante relevante: pássaro, ele é cantor, assim como o sujeito da canção: cantor do mundo, que protesta contra o mundo previamente "dito e feito".
Ao final, o sujeito deseja chamar a atenção do ouvinte (aquele que serve e é servido pelo sistema; aquele que está feliz com seu emprego fixo e sendo um cidadão respeitado): a vida pode e deve oferecer muito mais.
"Em pleno movimento, meu corpo é um instrumento, eu sopro aos sete ventos", diz o sujeito. A canção é hálito e odor de uma voz que fala impondo presença. O sujeito fez a parte dele, a canção cumpriu sua missão: comover, desestabilizar. Fica ao ouvinte a tarefa de não deixar a melodia acabar: encenar a vivência da canção.

***

Com a boca no mundo
(Lee Marcucci / Luiz Sérgio / Rita Lee)

Quantas vezes eles vão me perguntar
Se eu não faço nada a não ser cantar,
Quantas vezes, eles vão me responder
Que não há saída a não ser morrer

Isso não tem mais jeito
Foi tudo dito e feito
Agora não é tempo
Da gente se esconder

Tenho mais é que botar a boca no mundo
Como faz o tico-tico quando quer comer
Essa fome é vontade de viver
Chamar atenção pra você me ver

Em pleno movimento
Meu corpo é um instrumento
Eu sopro aos sete ventos
Pra você me escutar
Pra você me ver
Pra me ouvir falar
Disso tudo
Essa melodia não acaba
Quando eu resolver parar de cantar

2 comentários:

Rodrigo Faour disse...

O Ney gravou isso originalmente em 77. Tente ouvir essa versão. Está na caixa Camaleão que eu reeditei. É apoteótica.

Lucas disse...

Ótimo comentário! Sinto mesmo que esta música me é provocativa, convidativa! Como uma voz que grita uma verdade inconveniente.
Aliás achei a proposta do blog bem interessante, vou ler os outros post.