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14 dezembro 2010

348. O compositor me disse

Para Ana Chiara

Uma metacanção esmiúça cada filigrana de si (da alegria de ser canção): cada verso percorre e apresenta as tramas do ato cancional; ao mesmo tempo em que se sugerem as conexões (sempre ficcionais) que nós (ouvintes) estabelecemos.
"O compositor me disse", de Gilberto Gil, feita para a voz de Elis Regina, é uma metacanção: diálogo amoroso e erótico entre o compositor (aquele que "cria" a canção: equilibra letra e música) e o intérprete (aquele que dá sopro - voz e vida - à canção).
O sujeito que canta dá o recado lhe dado pelo compositor do título: o sujeito-cantor é um médium entre compositor e ouvinte. Ele diz o que o compositor lhe disse; elenca e ilumina as metáforas ("como se") que ampliam nossa percepção ficcional das sonoridades ao redor. Metacanção, "O compositor me disse" coloca-nos diante do espelho pois convida-nos à refletir sobre nós mesmos: nossos gestos (agressivos ou serenos: o respeito, ou não, ao tempo) diante da existência.
Deste modo, a canção trabalha sobre imagens que vão se aglutinando a fim de criar no ouvinte a impressão despretenciosa desejada pelo compositor. A canção se mostra e nos mostra como ela faz para criar a realidade na qual o ouvinte, a voz que canta e o compositor habitam: falando de si, pois recorre a máxima "só sou quando digo que sou".
Como o sujeito de "Música para ouvir", de Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra, que compõe: uma "música para compor o ambiente, música para escovar o dente, música para fazer chover, música para ninar nenê, música para tocar novela, música de passarela, música para vestir veludo, música pra surdo-mudo (...); o sujeito de "O compositor me disse" quer fazer do canto um instrumento da naturalidade da vida: ele compõe uma canção universal (música para ouvir música), que serve para tudo e para nada ao mesmo tempo, posto que "apenas" fala de si mesma.
Jogando com a brincadeira infantil do "meu mestre mandou dizer...", o sujeito da canção (a voz que fala) tenta desviar a atenção do ouvinte sobre si e ilumina a persona do mestre que lhe ensina novos modos de dizer e de cantar a vida. Porém, termina chamando atenção para o seu próprio investimento e esforço no cumprimento da sabedoria do mestre. O sujeito cria as fronteiras que o distinguem do mestre, e assim se individualiza: ficcionaliza sua identidade conveniente, preservando seus próprios enigmas.
O intérprete precisa passar o recado com a mesma naturalidade com que respira; sem esforço e sem pensamento sobre o ato: eis a grande dificuldade e delícia de cantar. Obviamente, para isso, Elis Regina (Elis, 1974) precisou condensar gestos entoativos (ligar-se sem ligar no vento): ao invés do registro dramático de costume, um canto simples, sereno e breve. Afinal, foi assim que o compositor disse para ela fazer: "E que eu parasse aqui assim".

***

O compositor me disse
(Gilberto Gil)

O compositor me disse que eu cantasse distraidamente
Essa canção
Que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca
Vindo do pulmão
E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando as palavras
Pelo ar

O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento
Sem ligar
Pras coisas que ele quis dizer
Que eu não pensasse em mim nem em você
Que eu cantasse distraidamente como bate o coração
E que eu parasse aqui
Assim

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

O Gil disse que nessa época a elis estava muito estressada.Ele quiz lhe dar um conselho em forma de música,e depois dizendo que ela não tinha entendido a mensagem,pois gravou com muita emoção.concordo com sua análise,a elis foi simples,serena e breve.

Anônimo disse...

Linda análise para uma linda e emocionante canção.