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31 julho 2010

212. Da cor do pecado

Para Gilmar

A voz de Ângela Maria (cantora excepcional) é a prova (se é que ainda precisamos de provas) de que a canção que precedeu a Bossa Nova (clean e moderna) não é ruim, como certa crítica deseja pintar. Esquecida pelos livros, a fase pré Bossa Nova merece ouvidos livres.
Essa "música romântica" ainda é consumida (e muito), apesar do abandono midiático. Os retratos da dor de cotovelo e da vida no morro eram o motor da voz. Não sei se tais temas, com as adequações - de gosto, de contexto, de mercado, etc - devidas, tenham sumido. Pelo contrário.
Para Liv Sovik (no livro Aqui ninguém é branco), "o discurso do amor romântico frustrado, torna-se veículo de expressão de uma briga entre homens por autoridade, prestígio, dinheiro".
Assim, uma canção como "Da cor do pecado", de Bororó, refletia, para além de um desejo erótico, a exposição de nossas relações (brasileiras) com o corpo (da cor de canela).
Ainda para Sovik, "Ângela Maria e sua música existiam no limiar entre ser negro, ou "sapoti", e a suspensão dessa identidade". Ou seja, a cor dessa cidade (desse país) sou eu: Ângela Maria, com plástica para afinar o nariz.
Ângela encarna a cor do pecado: a cor que excita a libido do sujeito da canção. A voz de
Ângela dialoga com o texto da canção e com o sujeito que, estimulado pelo imaginário que afirma não existir pecado do lado debaixo do equador, se lança na descrição (deleite) da musa híbrida.
Aqui, abaixo de equador, o corpo é o dispositivo de afirmação do desejo. Um corpo queimado de sol, ardido de mar. O arranjo de "Da cor do pecado" (Sucessos de ontem na voz de hoje, 1956) intensifica o clima de sedução, malícia e desejo. Além de apontar nossas entranhas identitárias: a valoração do corpo da mulher negra.
Não podemos esquecer que João Gilberto (a Bossa Nova) gravou "Da cor do pecado". Outros sentidos são destacados, outros ouvidos são afetados. Mas Ângela Maria (com seus arroubos e floreios vocais) radicaliza e ilumina expressões gestuais e afetivas mais corporais.

***

Da cor do pecado
(Bororó)

Esse corpo moreno, cheiroso e gostoso
que você tem, é um corpo delgado
da cor do pecado que faz tão bem
e esse beijo molhado, escandalizado
que você me deu
tem um sabor diferente
que a boca da gente
jamais esqueceu

E quando você me responde
umas coisas com graça
a vaidade se esconde porque se revela
a maldade da raça
e esse cheiro de mato tem cheiro de fato
saudade tristeza essa simples beleza
teu corpo moreno, morena enlouquece
e eu não sei bem por quê
só sinto na vida
o que vem de você

2 comentários:

Adriele Regine disse...

Gostei bastante do seu blog... è difernete de todos os outros que encontrei sobre música!

Obrigada por me proporcionar tantas histórias boas!

ADEMAR AMANCIO disse...

Sua opinião sobre a música pré bossa nova,feita no Brasil é perfeita,e sobre o canto da Ângela maria,mais que perfeita,excepcional.entoar é pra muitos,cantar é pra poucos.