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21 julho 2010

202. Eu te devoro

Lançada no disco Bicho Solto (1998), a canção "Eu te devoro", de Djavan, apresenta um sujeito que lista os motivos (os impulsos) que o levam a devorar o receptor. Noutro plano, há nesta canção a devoração de vários matizes sonoros: gesto típico na obra de Djavan.
Tal gesto leva-o, por vezes, a quase perder o objeto que canta, devido à profusão de imagens e sons justapostos (metáforas e metonímias muitas vezes com conexões distantes). O resultado é, no mais das vezes, uma peça (neo)barroca, ou rococó mesmo: o ouvinte "se perde" (no turbilhão complexo de sons e textos) e não consegue identificar o objeto sobre o qual a canção se desenvolve.
O fato é que Djavan não deixa nenhuma informação sonora brasileira (quiçá, universal) passar despercebida: ele devora tudo, arrumando tudo (com seu vigor criativo) e constrói um som seu, autoral.
Há uma sensualidade, toda tropical (um banho tépido), que sempre mina e ilumina as canções de Djavan. Em "Eu te devoro", por exemplo, o sujeito cobre o receptor "de um luxo radioso de sensações": desenha cada detalhe da constituição do outro que instiga no sujeito o desejo de devoração: ter para si as lindezas do outro. Em um ato todo primário, selvagem e humano.
O clima de entrega (mormaço do desejo) é estabelecido logo no início da letra: os sinais e o olhar do outro confundem, mas, mesmo assim, e talvez por isso mesmo, o sujeito devora. É o enigma do outro (pelo outro ser diferente do sujeito) que leva o sujeito à devoração do seu bem bem-querer. Esperar e esperar devorar o outro (cercar o outro de significantes inebriadores) mantém o sujeito vivo.
O olho (janela da alma, para alguns) é a porta da frente do outro, por onde o sujeito, confuso, invade (e é invadido) pelo outro. O sujeito é todo (da cabeça aos pés) o outro. Os versos do texto (com imagens do tempo que transcorre e do olhar do sujeito sobre o corpo do outro) vão adensando o desejo e a invasão do sujeito na subjetividade do outro, devorando-o.
O ápice da cantada é quando o sujeito compara a criação divina do universo à feitura do outro: objeto de desejo e milagre da existência do sujeito. Aliás, gesto comum em momentos de cantadas (elogios), o sujeito se apaga para iluminar o outro: "Deus, sem pensar em nada, fez a minha vida e te deu".
Ora, se Deus deu a vida do sujeito a um ser que, como este canta, é tudo, então Deus não foi tão cruel assim. Pelo contrário. E isso é usado como método persuasivo para encantar.
Nos versos "noutro plano te devoraria tal Caetano a Leonardo di Caprio", o sujeito marca que a relação cantada em "Eu te devoro" é hetero, mas poderia, noutro plano, ser homoerótica, caso ele fosse outro (Caetano) e ela fosse outro (Leonardo). Pouco importa, o importante é marcar o desejo de devoração pelo milagre da beleza que se avista.
A vida só é possível pelo olhar (enigmático) do outro. É a devoração deste olhar que sustenta (canta) o sujeito. Mesmo que isso signifique uma espera (eterna), o sujeito vive para devorar (e ser devorado). Afinal, só assim eles existem de fato: no canto.

***

Eu te devoro
(Djavan)

Teus sinais
Me confundem da cabeça aos pés
Mas por dentro eu te devoro
Teu olhar
Não me diz exato quem tu és
Mesmo assim eu te devoro
Te devoraria a qualquer preço
Porque te ignoro ou te conheço
Quando chove ou quando faz frio
Noutro plano
Te devoraria tal Caetano
A Leonardo di Caprio
É um milagre
Tudo o que Deus criou
Pensando em você
Fez a via-láctea
Fez os dinossauros
Sem pensar em nada
Fez a minha vida
E te deu
Sem contar os dias
Que me faz morrer sem saber de ti
Jogado à solidão
Mas se quer saber
Se eu quero outra vida,
Não, não.

Eu quero mesmo é viver
Pra esperar, esperar
Devorar você

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