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30 julho 2010

211. Realce

A alegria é a força maior. A tristeza, seu avesso, existe para nos situar no mundo. O (des)equilíbrio entre ambas - alegria e tristeza - exprime quem somos. Mas, sendo aquela o motor que nos dá luz, quanto mais investirmos nela (quanto mais purpurina) melhor.
"Realce", de Gilberto Gil (Realce, 1979) é pura dança e sexo e festa e glória: saturday night fever. A canção se desdobra para dentro de si, ao proliferar em seus versos a purpurina que realça o brilho de existir: e poder cantar e dançar aos deuses da glória.
Sua letra de mensagem fácil, aliada à melodia festiva (de empatia rápida), monta uma canção "pra cima": apontando para o lado bom, mesmo das coisas ruins (tristes). Aliás, em sentido mais profundo, ser feliz é saber que a tristeza também tem sua função na engrenagem da vida.
Ou seja, viver (e não ter a vergonha de ser feliz) passa pela ênfase na "impotência que se torna potência". E "Realce" é um hino à vida e à alegria que não cansa de se auto-afirmar: é um canto em defesa da permanência do SIM.
Gil traduz, assim, interesses da filosofia para a canção popular. De mãos dadas com Nietzsche, que afirmou que só acreditaria "em um deus que soubesse dançar", Gil cria um canto de celebração do corpo que baila sobre (e dentro) da vida que roda; agrega todos na gira; sobe no palco e brilha - "gente é pra brilhar, não pra morrer de fome", como Caetano Veloso canta.
Tudo é interessante e tem seu mistério. "Realce" justapõe várias imagens do cotidiano e significantes da cultura de massa (comum e tida como superficial) realçando o poder de cada (mínima) coisa na composição da vida.
Pagar para saber o que pode e o que não pode dar certo é função toda humana: assumir (des)limites - "O que a gente não pode, explodirá". Cuidar e descuidar (se distrair) da vida são movimentos que afirmam a vida: "se você não se distrai o atraso vira espera e sufoca", como Zélia Duncan canta.
A vida se insinua a cada verso da simples e sofisticada "Realce". Dançar, ou não dançar, é escolha, mas também é imposição da natureza (autonomia da vida sobre nós): discernir o quanto seremos afetados (e o que fazer com este afeto) é que são elas. No final, como Ken Hanes sugere no seu divertido Guia prático para a vida gay: "O mundo é um palco. Vista a roupa do personagem que está representando".
A fonte da força (neutra) está à disposição de todos. Basta cada um saber realçar (purpurinar: espalhar brilho) aquilo que melhor lhe jogue para cima: transcendência e afirmação reiterada da vida. Somos o nada (as grandes catástrofes dizem isso), mas somos, também, o tudo (energia do motor da natureza): polaridades complementares e interpenetráveis. O eterno retorno (em diferença) - o gesto cíclico da vida - nos atravessa e é atravessado por nós, com tudo de real teor de beleza.

***

Realce
(Gilberto Gil)

Não se incomode
O que a gente pode, pode
O que a gente não pode, explodirá
A força é bruta
E a fonte da força é neutra
E de repente a gente poderá

Realce, realce
Quanto mais purpurina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza

Não se impaciente
O que a gente sente, sente
Ainda que não se tente, afetará
O afeto é fogo
E o modo do fogo é quente
E de repente a gente queimará

Realce, realce
Quanto mais parafina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza

Não desespere
Quando a vida fere, fere
E nenhum mágico interferirá
Se a vida fere
Como a sensação do brilho
De repente a gente brilhará

Realce, realce
Quanto mais serpentina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza

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