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18 julho 2010

199. Manhã de carnaval

"Manhã de carnaval", de Luiz Bonfá e Antonio Maria, fez parte da trilha sonora do filme Orfeu do carnaval (adaptação da peça Orfeu da Conceição). Virou um clássico, com várias interpretações, nacionais e internacionais (estas, principalmente, com o título "A day in the life of a fool").
Orfeu é portador do dom poético e musical. Cantor por excelência, "apascentava as feras, controlava os ventos, acalmava os coléricos", como aponta a professora Carlinda Fragale Pate Nuñez. Mas, sem Eurídice (a mulher mais adorada), Orfeu é nada.
Com a morte de Eurídice, Orfeu (o peito extravasado) perde a vontade (o ânimo) de cantar. Porém, "sob os acordes de sua lira (...) os Senhores das Trevas se sentem comovidos e permitem o retorno de Eurídice". Orfeu é, portanto, aquele que realizou a funesta viagem: a catábase, ou seja, a ida (corporal) aos infernos.
Ele vai buscar sua amada Eurídice, com a condição de jamais olhar para trás até estarem de volta ao mundo dos vivos. Ele acha Eurídice, mas, para ter certeza de que é a amada que lhe segue, ele olha para trás e a perde para sempre. Perdendo também a si mesmo.
O olhar retroverso de Orfeu, o desejo de verdade (de ter certeza), lhe custa a vida, visto que sem Eurídice a existência guardará novos (tristes) sentidos: a solidão; a falta do objeto e do sujeito cantante e cantado que dava sentido à existência. Um silêncio ensurdecedor se alastra em seu ser.
Orfeu volta transformado: "a existência sem ti é como olhar para um relógio só com o ponteiro dos minutos". O desejo de verdade lhe roubou o bem mais precioso: sua razão de existir. Ele passará o resto da existência cantado a falta de Eurídice, à espera pelo dia "em que (ela) virás": "O meu viver é de esperar pra te dizer adeus".
Eurídice passa a existir (como, de fato, sempre existiu) nas cordas do violão de Orfeu. São os acordes que dão vida a Eurídice: sustentam-na viva na vida solitária de Orfeu. Orfeu e Eurídice vivem (e se eternizam) na palavra cantada: na repetição do mito.
"Manhã de carnaval" está cheia de sugestões ao mito: a imagem do "poeta por excelência, errante, solitário, insulado na sua arte e, despossuído de Eurídice, devolvido à sua orfandade", como descreve a professora Carlinda, é a mais significativa.
A canção tem a introdução inspirada no tema do terceiro movimento da "Humoresque em Si Bemol, opus 20", de Robert Schumann. A interpretação de Carlos Galhardo (o grande intérprete de valsas), de 1959, cria o clima de um cordão de carnaval (marcha rancho): um bloco da saudade, acompanhado por uma bandinha festiva, mas melancólica (lenta e compassada). O que figurativiza a vontade de "estar junto": olhar a beleza.
Ao acelerar o ritmo (da melodia e do canto) nos versos "canta o meu coração alegria voltou tão feliz a manhã deste amor", o sujeito tematiza a pletora de alegria e o consequente descompasso do coração diante da possibilidade da conjunção amorosa. Eis o lampejo de alegria que uma manhã de carnaval (repleta de esplendor) pode ofertar ao coração do folião errante e vazio do canto da amada.

***

Manhã de carnaval
(Luiz Bonfá / Antonio Maria)

Manhã, tão bonita manhã
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos
teu riso, tuas mãos
pois há de haver um dia
em que virás

Das cordas do meu violão
que só teu amor procurou
vem uma voz
falar dos beijos perdidos
nos lábios teus

Canta o meu coração
alegria voltou
tão feliz a manhã
deste amor

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Uma da músicas mais bonitas que conheço.