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28 julho 2010

209. Certas canções

Para o medievalista Paul Zumthor (no livro A letra e a voz), "a voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia sobreviver". Com seus diversos intérpretes, a voz poética (auxiliada pelos modos de difusão oral), está em toda a parte. Essa voz atravessa, assim, nossos discursos cotidianos, mantendo a memória (reserva da identidade); e presentificando o passado: a única certeza (quase) estável.
Zumthor argumenta que a voz poética - no instante da performance vocal - produz a função essencial da poesia, ou seja, “a maravilha de uma presença fugidia, mas total". Diferente da escritura que, com o excesso de fixidez, perde o momento único.
"Certas canções", de Tunai e Milton Nascimento (Ânima, 1982), fala disso, na medida em que podemos ouvir a voz de um compositor que admira o poder de arrebatamento (força motriz) filosófico-poético de canções não compostas por ele. Mas que cabem tão dentro dele que o sujeito deseja tê-las feito. O que encanta o sujeito é aquilo que poderia ter sido dito (por ele) e não foi.
Diferente do invejoso (que quer tomar o lugar do outro), o sujeito de "Certas canções" demonstra admiração pela multiplicidade de vozes. Ele traz para o seu canto a experiência de sentir outros cantos: alheios e tão íntimos. Ele não nega o outro, ao contrário, estabelece uma relação de fratria com o outro: buscando a sobrevivência de todos.
O ouvinte se torna cúmplice, facilmente. Afinal, quantas vezes, ao ouvir uma canção, dizemos: "parece que foi feita para mim"? Ou seja, para determinada situação de nossa existência. Eis a força persuasiva da voz poética: uma mesma audição (coletiva) será recebida por cada ouvinte de forma ímpar.
De modo diferente, já que ele é um compositor, o sujeito de "Certas canções", além de ser afetado pela canção, não entende como ela (tão dele) não tenha sido feita por ele. A comoção sentida pelo sujeito é o motivo de sua canção sobre (certas) canções: aquelas que lhe chegam como o amor.
Para Maurice Blanchot (no livro O espaço literário), "a poesia não é dada ao poeta como uma verdade e uma certeza de que ele poderia aproximar-se; ele não sabe se é poeta, mas tampouco sabe o que é ser poesia, nem mesmo se ela é; ela depende dele, de sua busca, dependência que, entretanto, não o torna senhor do que busca mas torna-o incerto de si mesmo e como que inexistente". Tais palavras, sem dúvidas, dizem muito do sujeito de "Certas canções".
A voz bela, e de clima terno, de Milton Nascimento empresta vida ao estado singular do sujeito de "Certas canções". Este sobrepõe imagens e acelera (um pouco) o andamento na tentativa de reter a magia das revelações tão fugidias que tais sereias lhe fazem.
Se for verdade que onde estiver nosso coração ali estará o tesouro ("calor que invade, arde, queima, encoraja") de nossa existência, o coração ("amor que invade, arde, carece de cantar) do cantor está no canto - na performance: naquilo que existe enquanto dura, escapando pelos interstícios dos sons. E destes também depende o emissário: nós, ouvintes.

***

Certas canções
(Tunai / Milton Nascimento)

Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?

Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor

Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor
Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gesto molhado no olhar

Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar

2 comentários:

Flávia Stos disse...

Recordei-me que certa vez o Milton Nascimento comentou no Altas Horas que ao ouvir uma canção do Paul MacCartney(se não me engano)pensou:pq que eu não fiz essa canção?

Guilherme Luz disse...

Ebony and Ivory se chama a canção