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25 julho 2010

206. Tigresa

"Tigresa", de Caetano Veloso, é metacanção na medida em que temos um sujeito compositor contando (cantando) a beleza de compor uma canção: a tigresa que lhe acontece, durante o processo de feitura.
A tigresa é a própria canção: é a vida, do cancionista (do poeta), para ser ouvida (lida) no supra-senso. Caetano, certa vez, afirmou: "As minhas letras são todas autobiográficas. Até as que não são, são". "Tigresa" prova isso ao tirar os véus do instante exato da composição; ao borrar os limites entre real e ficção.
É no processo de compor que o cancionista entra em contato com estágios profundos de si. O leão (Caetano) é devorado pela tigresa (Caetano): filigranas do mesmo indivíduo. É assim que entendemos, também, quando o mesmo Caetano Veloso afirma: "Não sou branco, nem homem". Ele é e não é, pode e não pode ser. Homo ludens, o artista joga com as instâncias da vida.
Daí que a performance vocal de Maria Bethânia (Pássaro da manhã, 1977) dispara sentidos ambíguos e andróginos: Bethânia e Caetano (irmãos); tigresa e leão (amantes); canção e cancionista (interdependentes). Côncavos, convexos e reconvexos. Avesso do bordado, um do outro. Infinitamente, um no outro. A criação como o duplo do criador, e o contrário disso.
"Tigresa" é a dificuldade (prazerosa) da artesania poética versus a necessidade de expressão do sujeito; é a representação para a suspensão do juízo ("o mal é bom e o bem cruel"). A canção é a luva que a tigresa de unhas negras (e tão afiadas) esqueceu de por. A arte como solução: "ela me conta com certeza que tudo vai mudar".
Os cortes e fraturas temporais e emocionais na narrativa da canção funcionam como desvios que intensificam a verdade (ficcional): até que ponto o cancionista domina a (fera) canção? O ouvinte (auditeur) fica tão envolvido (seduzido) pela imagem pintada da tigresa que deixa de perceber a luta (erótica) entre o cancionista e o ato de compor.
A tigresa canta a vida para o sujeito. Assim como a canção canta o cancionista. Na frente do espelho, o passado de ambos se apresentam e se cruzam. As aparentes contradições (ter muito ódio no coração e dar muito amor) se esfregam, marcam a pele (e o coração) do sujeito: o cancionista é afetado pela canção. E vice-versa.
Assim, a canção é a invenção do lugar onde a gente e a natureza feliz vivem sempre em comunhão: aqui, a tigresa pode mais do que o leão. Cantar é ser invadido por este lugar.
O cancionista, arrebatado pela criatura que lhe surge, durante o exercício artístico e intelectual, não encontra mais palavras (na tentativa de chegar ao real indizível) e corre para o violão, num lamento (refúgio de si). Talvez um som consiga significar esta mulher que surge. A manhã nasce azul: a composição está terminada. A felina (que destroçou o sujeito, ao sair dele e ser, também, ele) pode viver: é o canto do sujeito que lhe dá vida, ou seria o contrário?

***

Tigresa
(Caetano Veloso)

Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza que me aconteceu
Esfregando a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom e o bem cruel

Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu
Ela me conta com certeza tudo o que viveu
Que gostava de política em mil novecentos e sessenta e seis
E hoje dança no frenetic Dancin’ Days
Ela me conta que era atriz e trabalhou no Hair
Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor

Mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis inventando um lugar
Onde a gente e a natureza feliz
Vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais do que o leão

As garras da felina me marcaram o coração
Mas as besteiras de menina que ela disse, não
E eu corri pro violão, num lamento, e a manhã nasceu azul
Como é bom poder tocar um instrumento

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Ainda bem que vc não disse que essa música foi feita pra sonia braga,porque não foi,"trem da côres",sim.

Anônimo disse...

Está claro que esta música foi feita para Sônia Braga.
Está explicito na trecho " Ela disse que era atriz e trabalhou no Hair" Sônia foi a atriz principal na peça teatral Hair. E também ele diz " Hoje dança no Frenetic Dancin´Days", novela na qual Sônia também era a protagonista.