Pesquisar canções e/ou artistas

07 novembro 2010

311. Deusa da minha rua

Nada se perde. Os contatos e as misturas culturais (processo continuum) formam nossa contemporaneidade. Se as economias centrais impõem suas culturas, as economias periféricas não fazem por menos e preservam suas peculiaridades, além de promoverem, no local, elementos híbridos globais. Compartilhamos o mesmo espaço planetário.
Com isso, podemos pensar as poéticas que, se hoje são lançadas como "novidades", na real, são releituras (recontextualizações) de elementos da história. O sampler, no meio sonoro, é forte exemplo disso, com sua capacidade de misturar os fragmentos do passado com os do presente.
Noutra direção, penso nessa "permanência da tradição" enquanto ouço Nelson Gonçalves cantar "Deusa da minha rua", de Newton Teixeira e Jorge Faraj. Com sua voz calcada no operístico, na virtuosidade da garganta e dos pulmões, Nelson Gonçalves dá o clima de serenata que a canção pede. Aliás, a canção está guardada no disco entitulado Serenata, de 1991.
Digo isso porque "Deusa da minha rua" recupera os moldes das cantigas de amor medievais: com um sujeito que idealiza e ama a amada à distância: ela tão rica e ele tão pobre. As posições "plebeu" e "nobre" são os disjuntores das personagens.
O sujeito é o fiel vassalo que tem plena consciência da impossibilidade na consumação do amor. Aliás, ele nem pensa em consumação, longe que está de alcançar as alturas que a mulher adorada está.
O canto, assim, ganha um toque de sofrimento, melancolia e abandono de si. Ela deusa (impossível de ser mensurada), ele fiel (eterno cantor em busca (sempre fracassada) pela palavra mais certa): eis os lugares das personagens.
A canção, letra e melodia, tem uma estrutura que desenha a deusa, ao mesmo tempo em que estabelece a distância: basta percebermos que é a partir da imagem da mulher refletida na poça d'água que o sujeito canta.
Ciente de sua insignificância, ele nem sequer ergue os olhos para vê-la passar: como uma deusa não pode ser vista pelo humano, ele se contém com a imagem embassada e tremida na água: elemento que tanto representa as lágrimas vertidas pelo sujeito, quanto o embriagamento deste no mar da ilusão ("espelho da minha mágoa") que a mulher simboliza.
Ele é daqueles que, se pudesse, não mandaria ladrilhar a rua, pois assim perderia o reflexo: único índice da mulher mais amada. Ao contrário de Orfeu, que perdeu sua Eurídice ao tentar olha-la de frente, o sujeito de "Deusa da minha rua" sabe o lugar que ocupa nesta sofrida relação; sabe como agir para manter o seu sonho impossível (sonho que não vale a pena sonhar): só assim, ela nunca fugirá e ele sempre terá a quem cantar, mantendo-se vivo, na beira do abismo.

***

Deusa da minha rua
(Newton Teixeira / Jorge Faraj)

A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
Costuma se embriagar
Nos seus olhos eu suponho
Que o sol, num dourado sonho
Vai claridade buscar

Minha rua é sem graça
Mas quando por ela passa
Seu vulto que me seduz
A ruazinha modesta
É uma paisagem de festa
É uma cascata de luz

Na rua uma poça d’água
Espelho da minha mágoa
Transporta o céu
Para o chão
Tal qual o chão de minha vida
A minh’alma comovida
O meu pobre coração

Espelhos da minha mágua
Meus olhos
São poças d’água
Sonhando com seu olhar
Ela é tão rica e eu tão pobre
Eu sou plebeu
ela é nobre
Não vale a pena sonhar

2 comentários:

Anônimo disse...

Que arte mais linda, porq ñ encontrei esse blog antes :/
estava precisando mt para uma apresentação do trabalho. Vc disse tudo que eu qria ter passado para meus colegas de classe.

Leonardo Davino disse...

Agradeço as palavras elogiosas e sugiro que acompanhe o novo projeto:

http://lendocancao.blogspot.com/

abraço
Leonardo