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22 julho 2010

203. Poema

"Poema", de Cazuza e Frejat, é uma daquelas canções comoventes que fisgam o ouvinte agindo direto no escaninho da memória. Repleta de versos que remetem o ouvinte ao passado (lugar/espaço/tempo seguro), "Poema" flui com um sujeito querendo, a princípio, recolher-se ao ventre (bolha e paraíso), mas percebe que o passado lhe fez.
Ney Matogrosso (Olhos de farol, 1999), como a voz posta no ponto exato da saudade, ilumina a mensagem da letra e engrandece o poder encantador da canção. Ora com vigor, ora com passionalidade, Ney estabelece um pacto de aceitação e cumplicidade com quem ouve sua voz.
Mas quero pensar, primeiro, no título da canção. Ela nos leva à (quase) caduca querela entre poesia e letra de canção. Ou seja, letra de canção é poesia?
Não. Não é e nem deve querer ser. Dizer que letra é poesia, reduz o valor (e o poder) das duas instâncias artísticas. Cada qual tem as suas especificidades de feitura e de recepção (consumo). Não podemos ignorar a performance vocal e o acompanhamento instrumental, por exemplo, ao tratarmos de canção. Tão pouco podemos desprezar "a linguagem carregada de significado" e os desvios na língua que constituem a poesia.
Porém, sem me contradizer, respondo também que sim. Letra é poesia na medida em que trabalha com o signo verbal, a palavra, objeto (também) da poesia (literatura). Além disso, se pensarmos a poesia como um canto afirmativo da existência, noutra perspectiva, poesia é canção, e vice-versa.
Ou seja, uma coisa atravessa a outra. Hoje, diante da imposição (relação de poder) da escrita, por exemplo, lemos muitos textos que a princípio eram canções (para ser cantados), mas, como as partes melódicas (a notação musical é bem tardia, como sabemos) não chegaram até nossos dias, sem nenhum grilo, lemos canção como se fosse poesia. Desde os textos de Homero até os provençais estão aí para provar isso.
Seja como for, a discussão é complexa, complicada e acirrada. Requer e merece inúmeros torneios teóricos e filosóficos que o espaço não permite. Para o momento, importa pensar a canção e a poesia como interfaces da pulsão de vida: vida como criação (sempre) ficcional: vida mais real.
Voltando à canção "Poema", temos um sujeito que, diante de um pesadelo, depara-se com o medo
das exigências da vida louca vida. Aparentemente um adulto, ele percebe (passa em revista) os momentos bons (o aconchego no colo) que ficaram para trás.
O tempo infantil ficou guardado na memória do sujeito e agora, pelo medo, volta com a força precisa para consolá-lo. Naquele tempo, "o medo era desculpa pra um abraço ou consolo". Hoje, sozinho no mundo, o sujeito se vale do calor que tal lembrança proporciona.
Obviamente, em geral, quando olhamos o passado (que é a única certeza que se tem), a impressão é a de que "éramos felizes e não sabíamos". Tal ideia, em choque com os medos e apelos do presente (e a incerteza do futuro, que não existe), parece fazer sentido. Ao menos consola: plasma pensamentos de coragem e ânimo no devir.
Alguma coisa (indescritível: poema/canção) sempre fica, apesar de perdermos muitas coisas pelo caminho. Esta coisa, que não tem fim, pois nos constitui enquanto sujeitos, cantam nossas vidas, para nós, sustentam-nos no ar eliminando (ao condensar) presente, passado e futuro. Afinal, o caminho pode ser escuro e frio, mas também iluminado pelo que passou (há minutos atrás).

***

Poema
(Cazuza / Frejat)

Eu hoje tive um pesadelo
E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo

Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era ainda criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou consolo

Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei, nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
E que não tem fim

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás

4 comentários:

Bruno Lima disse...

Muito bom!!!!!

Paulo disse...

Cazuza era um adolescente de 15 anos qdo escreveu esse "Poema", precisamente no dia em que morreu sua avó materna. Lucinha Araújo descobriu esse poema, guardado no fundo de uma gaveta de Cazuza (manuscrito numa folha de caderno arrancada) após a morte dele, e entregou-o a Ney Matogrosso, que, imediatamente pediu p/ que Frejat a musicasse. E o resultado foi essa delícia, na voz deslumbrante de Ney. E, mudando um pouco de assunto, essa capa do "Olhos de Farol" é uma das mais lindas e de maior bom gosto que eu já vi.

ADEMAR AMANCIO disse...

Gostei da explicação se letra é poesia,não é,mas também é.Eu já li varios poemas desprovidos de poesia e/ou qualidade poética.

Alane Marie disse...

https://www.youtube.com/watch?v=eM7p8lIiU-s Minha singela interpretação dessa música linda!