A voz que fala em "O meu guri", de Chico Buarque, deixa escapar certa simplicidade, comum às pessoas comuns, mas que, por isso, carregam uma sabedoria preservada do conhecimento acadêmico.
Semelhante ao narrador de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, o sujeito de "O meu guri" conta casos a um "seu moço": termo vocativo típico da "gente humilde", ao se dirigir a um outro, mais letrado, digamos assim.
Esta figura do "sujeito simples", que enche nossas cidades, se prolifera, ao longo da canção, à medida em que ouvimos a história narrada. De um guri, como muitos, que nasce no momento errado, visto amplificar a "cara de fome" o mundo que lhe recebe.
O guri é metáfora e metonímia da crueldade: choque de realidade na mãe/pai que lhe canta a vida. O guri não tem um nome para lhe sustentar: ele é muitos; guarda em si a legião que lhe antecedeu e a que lhe sucederá. O guri é a outra cara da nação: aquela que, do Videgal, vê o mar e as ilhas.
Penso nisso enquanto ouço Beth Carvalho, com a tradição do samba na voz, cantar a canção de Chico, no disco Intérprete (1991). E quando leio, no livro Chico Buarque do Brasil, organizado por Rinaldo de Fernandes, uma passagem em que Vinícius de Moraes aponta: "Chico Buarque é um fenômeno que alcança (...) a união verdadeira da cultura com o povo".
Sem espaço para analisar, aqui, o que Vinícius chama de "cultura" e de "povo", aproveitamos a ideia principal: a de que Chico Buarque cancionista equilibra e complexifica sabedorias do universo vocal (ainda não escrito) para compor a canção do grande amor.
Eu sou tio, ele é tio, no tempo e espaço do guri suado e veloz: sujeito que luta para ser objeto de sua própria vida, que, em sua meninice, "ele um dia me disse que chegava lá". E chegou: hoje ele é canção, ouvida e cantada pelo moço, pelo tio.
Olha aí, basta desnublar os automatizados olhos para ver o guri: plasmado à nossa frente; dando-nos de presente, para nos encabular, a tensão flutuante da vida.
Correntes de ouro no pescoço, signo da vitória financeira, hoje, de revés, é o guri quem documenta a mãe/pai. Cantar o guri faz o sujeito se manter vivo: "eu consolo ele, ele me consola".
A melodia lamentosa se une, ao final, à dor de ver, sem entender, o desfecho da trajetória do guri, que disse que um dia chegava lá. O verso "boto ele no colo pra ele me ninar" sintetiza, com a evocação da Pietá, de Michelangelo, o início, o meio e o fim do guri, e para a mãe/pai somos sempre guri, que, nas bordas da favela, "um olho na bíblia, outro na pistola", "mandou, julgou, condenou, salvou, executou, soltou, prendeu, perdeu".
Esta figura do "sujeito simples", que enche nossas cidades, se prolifera, ao longo da canção, à medida em que ouvimos a história narrada. De um guri, como muitos, que nasce no momento errado, visto amplificar a "cara de fome" o mundo que lhe recebe.
O guri é metáfora e metonímia da crueldade: choque de realidade na mãe/pai que lhe canta a vida. O guri não tem um nome para lhe sustentar: ele é muitos; guarda em si a legião que lhe antecedeu e a que lhe sucederá. O guri é a outra cara da nação: aquela que, do Videgal, vê o mar e as ilhas.
Penso nisso enquanto ouço Beth Carvalho, com a tradição do samba na voz, cantar a canção de Chico, no disco Intérprete (1991). E quando leio, no livro Chico Buarque do Brasil, organizado por Rinaldo de Fernandes, uma passagem em que Vinícius de Moraes aponta: "Chico Buarque é um fenômeno que alcança (...) a união verdadeira da cultura com o povo".
Sem espaço para analisar, aqui, o que Vinícius chama de "cultura" e de "povo", aproveitamos a ideia principal: a de que Chico Buarque cancionista equilibra e complexifica sabedorias do universo vocal (ainda não escrito) para compor a canção do grande amor.
Eu sou tio, ele é tio, no tempo e espaço do guri suado e veloz: sujeito que luta para ser objeto de sua própria vida, que, em sua meninice, "ele um dia me disse que chegava lá". E chegou: hoje ele é canção, ouvida e cantada pelo moço, pelo tio.
Olha aí, basta desnublar os automatizados olhos para ver o guri: plasmado à nossa frente; dando-nos de presente, para nos encabular, a tensão flutuante da vida.
Correntes de ouro no pescoço, signo da vitória financeira, hoje, de revés, é o guri quem documenta a mãe/pai. Cantar o guri faz o sujeito se manter vivo: "eu consolo ele, ele me consola".
A melodia lamentosa se une, ao final, à dor de ver, sem entender, o desfecho da trajetória do guri, que disse que um dia chegava lá. O verso "boto ele no colo pra ele me ninar" sintetiza, com a evocação da Pietá, de Michelangelo, o início, o meio e o fim do guri, e para a mãe/pai somos sempre guri, que, nas bordas da favela, "um olho na bíblia, outro na pistola", "mandou, julgou, condenou, salvou, executou, soltou, prendeu, perdeu".
***
O meu guri
(Chico Buarque)
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá, olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri, e ele chega
Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço,
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri, e ele chega
Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador,
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri, e ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo eu não disse, seu moço?
Ele disse que chegava lá,
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
(Chico Buarque)
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá, olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri, e ele chega
Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço,
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri, e ele chega
Chega no morro com carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador,
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri, e ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo eu não disse, seu moço?
Ele disse que chegava lá,
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
Um comentário:
Uma penca de documentos,pra finalmente eu me identificar.é de doer.
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