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02 outubro 2010

275. Canta canta, minha gente

Se, como pensou Foucault, a prisão existe para que nós pensemos que estamos livres fora dela, só nos resta aproveitar e experimentar a vida, ora se desviando (ensaiando alternativas), ora manipulando, as potências ativas e reativas impostas.
Cantar, para o sujeito de "Canta canta, minha gente", de Martinho da Vila, é uma forma de resistência à força (e ao peso) do hábito de lutar (e, por vezes, cansar) contra aquilo (sem rosto, nem nome) que tenta (e consegue: eis a crueldade de viver) tornar nossos corpos dóceis: disciplinados, facilmente manipulados.
É certo que vivemos em sociedade cujos apelos nos forçam e limitam nosso "jeito de corpo", e, por isso mesmo, estabelece critérios, dispositivos para a manutenção de uma malfadada (fracassada) democracia.
Cantar, para o sujeito da canção, e cantar dobrado (cantar muito: cantar sempre), é a utopia revolucionária possível. Cantar, passando em revista a história de sua gente (compondo o nosso samba-enredo), como ele faz, ao evocar os ritmos que constituem o amálgama Brasil, tendo o samba como cenário, é festa da raça: alegria de viver - afirmação de existir.
A sua gente sofrida tem no canto (na mistura lúcida da dor histórica com a alegria momentânea) o acesso à vida. Como diz a máxima de Jorge Mautner: "Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé", convivendo com suas harmonias e contradições, diz o que somos.
O disco Canta canta, minha gente (1974), aliás, é festa da vontade brasileira de viver. Aqui: "O sino da Igrejinha faz belém blem blam e ogum é senhor". Não existe pecado do lado de baixo do equador: façamos, vamos amar a vida na voz: no canto que espanta os males e acende as belezas dentro de cada indivíduo. Eis o melhoramento da vida, desejo de quem canta forte e alto.
Deste modo, iluminada e arrepiada pela vida (que não nega a dor, apenas sabe usá-la a seu favor), minha gente equilibra as energias reativas e ativas (destrona os senhores e coroa os escravos: em orgia de "sins") e persevera na paixão de, simplesmente, ser e estar no mundo: "em cima do morro ou sambando no asfalto".
A liberdade total é ilusória e utópica: só existe enquanto potência no canto (experimento) de quem canta. No projeto existencial do sujeito, "cantar é mais do que viver do que sonhar, é ter o coração daquilo": cantar é afetar e ser afetado pelos corpos que formam nosso corpo: minha gente.
O que pode um corpo? O convite-intimação é simples e complexo: canta canta, minha gente: vamos descobrir - tirar o véus; criar possibilidades; problematizar a repressão que se dá do ponto de vista do poder constituinte (afinal, a repressão existe porque aceitamos o poder constituído); dar vida à vida: no canto, na voz.

***

Canta canta, minha gente
Martinho da Vila

Canta, canta minha gente
Deixa a tristeza pra lá
Canta forte, canta alto
Que a vida vai melhorar

Cantem o samba de roda
O samba-canção e o samba rasgado
Cantem o samba de breque
O samba moderno e o samba quadrado
Cantem ciranda e frevo
O coco, maxixe, baião e xaxado
Mas não cantem essa moça bonita
Porque ela está com o marido do lado

Quem canta seus males espanta
Lá em cima do morro ou sambando no asfalto
Eu canto o samba-enredo
Um sambinha lento ou um partido alto
Há muito tempo não ouço
O tal do samba sincopado
Só não dá pra cantar mesmo
É vendo o sol nascer quadrado

2 comentários:

Bruno Lima disse...

Conseguiu aproveitar muito bem os conceitos foucaultianos, ótimo texto!

Anônimo disse...

EU SOU DO URUGUAI MAS ADORO SUS MÚSICAS!!!