Cantar é dar vida; é criar um suporte para a movimentação do indivíduo. Tal atitude está na nossa gênese: o útero materno (espaço paradisíaco e protetor). Daí se constitui nossa necessidade de música e narrativa: daí a importância da canção popular. Unindo letra (narrativa) e música - itens essenciais à nossa individuação - a canção popular supre necessidades ontológicas.
A voz da mãe, deste modo, cumpre papel fundamental na afirmação da existência do filho. O "simples" fato de ter dentro de si o outro, e cantar (abastecer) este outro, faz da mãe - da relação mãe-bebê - a peça chave de nossa existência. Obviamente, cada caso é um caso e merece ser analisado como tal.
Quando a mãe, portanto, canta uma canção de ninar, por exemplo, está, além de alentando o indivíduo diante do silêncio e da escuridão da noite, oferecendo palavra e melodia no tom de entendimento necessário ao infante (sem fala); estimulando a constituição de um "eu".
Em 1979, Chico Buarque compôs (e interpretou com Marlene), para a trilha de Ópera do malandro, uma canção que, aparentemente, destrói a dialogia harmônica mãe-filho: "Uma canção desnaturada".
Esta canção é um dos mais cruéis cantos de uma mãe, dirigida à filha. Nós, ouvintes, "presenciamos" um aterrador ajuste de contas: uma mãe desgostosa pelo caminho escolhido pela filha renega a cria.
A mãe renega a todo o percurso gerador da curuminha. Olha para a filha agora, adulta, e recua, retroativamente: espalhando versos que apontam o regresso até à escuridão do ventre. O ouvinte entra em viagem vertiginosa. A entoação da voz - pausas dramáticas e acelerações de exasperação - das vozes de Chico e Marlene, em conturbado diálogo, dá o tom da canção, desnaturada.
A voz materna, pela volta no tempo, quer desnaturalizar a criatura que tem diante de si: cindir a progressão natural da existência do outro. Pudesse esta mãe e reverteria o tempo, para vibrar (de alegria) a cada tropeço infantil, a cada choro noturno.
A filha não teria colo, leite, consolo, caso a mãe tivesse o poder de saber no que a cria se tornaria. A curuminha, que hoje sai maquiada dentro do vestido da mãe - rouba para si a figura da mãe: daí a ira da mãe? -, "pelo cordão perdido" seria e é (afinal, "praga" de mãe pega e desconstrói) recolhida à escuridão do ventre de onde não deveria ter saído: viva.
Quando a mãe, portanto, canta uma canção de ninar, por exemplo, está, além de alentando o indivíduo diante do silêncio e da escuridão da noite, oferecendo palavra e melodia no tom de entendimento necessário ao infante (sem fala); estimulando a constituição de um "eu".
Em 1979, Chico Buarque compôs (e interpretou com Marlene), para a trilha de Ópera do malandro, uma canção que, aparentemente, destrói a dialogia harmônica mãe-filho: "Uma canção desnaturada".
Esta canção é um dos mais cruéis cantos de uma mãe, dirigida à filha. Nós, ouvintes, "presenciamos" um aterrador ajuste de contas: uma mãe desgostosa pelo caminho escolhido pela filha renega a cria.
A mãe renega a todo o percurso gerador da curuminha. Olha para a filha agora, adulta, e recua, retroativamente: espalhando versos que apontam o regresso até à escuridão do ventre. O ouvinte entra em viagem vertiginosa. A entoação da voz - pausas dramáticas e acelerações de exasperação - das vozes de Chico e Marlene, em conturbado diálogo, dá o tom da canção, desnaturada.
A voz materna, pela volta no tempo, quer desnaturalizar a criatura que tem diante de si: cindir a progressão natural da existência do outro. Pudesse esta mãe e reverteria o tempo, para vibrar (de alegria) a cada tropeço infantil, a cada choro noturno.
A filha não teria colo, leite, consolo, caso a mãe tivesse o poder de saber no que a cria se tornaria. A curuminha, que hoje sai maquiada dentro do vestido da mãe - rouba para si a figura da mãe: daí a ira da mãe? -, "pelo cordão perdido" seria e é (afinal, "praga" de mãe pega e desconstrói) recolhida à escuridão do ventre de onde não deveria ter saído: viva.
***
Uma canção desnaturada
(Chico Buarque)
Por que creceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
Por que creceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
2 comentários:
É muito dura consigo mesma, e com o fruto gerado. Sempre hà tempo de reverter a pior situação. E o que era problema pode tornar-se centro de bela solução e centro de Vida.
Parabens ao Autor.
René da Ilha
Uma das mais poderosas de Chico.
Editei esta obra com fotos de Vladimir Clavijo.Ficou bem interessante...
Confere.
Abraço.
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