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19 abril 2010

109. José

É praticamente impossível ler o poema "José", de Carlos Drummond de Andrade, sem que a canção de Paulo Diniz (E agora, José?, 1973) apareça e conduza nossa leitura. O fato é que a canção, pelo apelo popular que a maioria das canções tem, entrou para o inconsciente coletivo e força nossa perspectiva.
No entanto, há que fazermos, pelo menos, uma ressalva à música que Paulo Diniz criou para o poema: O tom alegre demais (do acompanhamento melódico) para um texto de tom interrogativo-introspectivo.
O José do poema é uma metáfora do povo diante das agruras (perdas e danos) da condição de ser brasileiro. E a melodia parece "zombar" das desgraças (falta de passado-presente-futuro) de José, ao caminhar por uma imagem festiva. A musicalidade abranda o significado.
Na canção, a pergunta cíclica - "e agora, José?" - perde o vigor rítmico já expresso no poema (cheio de redondilhas). O fundo político se esvai, já que texto e melodia não se encontram. A radicalização dos questionamentos (tudo é posto em dúvida e em suspensão) não tem eco na música. Apesar da voz de Paulo Diniz trabalhar sobre certa agonia - "não veio a utopia e tudo acabou".
Paulo Diniz musicou outros poemas - de Gregório de Matos, "Definição do amor"; de Augusto dos Anjos, "Versos Íntimos"; de Jorge de Lima, "Essa nega fulô"; e de Manuel Bandeira, "Vou-me embora pra Passárgada", por exemplo. Mas isso são outras histórias.

***

José
(Carlos Drummond de Andrade / Paulo Diniz)

E agora, josé?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora, josé?
E agora, você?
Você que é sem nome,
Que zomba dos outros,
Você que faz versos,
Que ama, protesta?
E agora, josé?

Está sem mulher,
Está sem carinho,
Está sem discurso,
Já não pode beber,
Já não pode fumar,
Cuspir já não pode,
A noite esfriou,
O dia não veio,
O bonde não veio,
O riso não veio
Não veio a utopia
E tudo acabou
E tudo fugiu
E tudo mofou,
E agora, josé?

Sua doce palavra,
Seu instante de febre,
Sua gula e jejum,
Sua biblioteca,
Sua lavra de ouro,
Seu terno de vidro,
Sua incoerência,
Seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
Quer abrir a porta,
Não existe porta;
Quer morrer no mar,
Mas o mar secou;
Quer ir para minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
Se você gemesse,
Se você tocasse
A valsa vienense,
Se você dormisse,
Se você cansasse,
Se você morresse...
Mas você não morre,
Você é duro, josé!

Sozinho no escuro
Qual bicho-do-mato,
Sem teogonia,
Sem parede nua
Para se encostar,
Sem cavalo preto
Que fuja a galope,
Você marcha, josé!
José, para onde?

6 comentários:

Joana Maria disse...

Gostei do q disse sobre a música e concordo. Agora, se Jander tivesse a oportunidade de gravar a versão dele, q cantou pra mim ontem, acho q analisaria diferente. Na próxima aula peça a ele pra cantar. Ele faz um recortes maravilhosos, sem falar q o tom da música é de strema revolta. Muito Show!!! bjs e até!!

Jasanf Araujo disse...

Eu não ouvi o poema José musicalizado por Paulo Diniz; no entanto gostei da análise e fiquei curioso em saber como ele elaborou os arranjos e a melodia deste lindo texto de Drummond.

ADEMAR AMANCIO disse...

Na minha atrevida opinião,acho que essa melodia,voz e interpretação,só engrandeceu os versos de Drumond.Eu acho uma gravação tão linda que devia ser tocada nas igrejas,nos velórios,e até nos cemitérios quando tiver enterro.

César Borralho disse...

Até assinto que o poema remeta à música a quem conhece a música e a música eventualmente remeta ao poema a quem conhece o poema - natural. Porém, a afirmação de haver tom alegre demais, melodia que zomba das desgraças e caminha por uma imagem festiva, abranda significados, perde o vigor, esvai fundos políticos, e quaisquer outras coisas ditas neste sentido, forçam grandicissimamente uma única perspectiva. O violão inicia um pranto em condoída lamúria com os outros instrumentos e a voz do Paulo Diniz é uma espécie de violão mais triste. A música forte emprestou o rosto trágico ao poema José, que rosto não tinha, só dor. Ainda me pergunto, amigo, onde estará a zombaria em festa que você conseguiu ver?

Abílio Neto disse...

Pois é, César, concordo inteiramente com seu comentário. Gente que só entende de literatura e ousa criticar melodia de música dá nisso aí.

Graco Medeiros disse...

Bingo! Poesia escrita ou declamada é uma coisa. Música cantada e acompanhada com instrumentos musicais é outra.
A análise é uma babaquice literata do blogueiro.