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08 setembro 2010

251. Fred Astaire do samba

O samba vai (2010) é o primeiro disco inteiramente feito por canções (letra e melodia) de Mário Adnet. Nele, o compositor, com seu reconhecido e sofisticado ouvido, canta (interpreta), com algumas participações para lá de especiais, sambas que sublinham a graça e o humor (malicioso) que caracterizam o ritmo.
Em "Fred Astaire do samba", de Mário Adnet e Chico Adnet, temos um sujeito que tenta persuadir uma parceira de dança: "sou feio, mas sei sambar", dispara. E, aqui, na roda de samba (em alguma gafieira qualquer), como na vida, com sua profusão de obstáculos feitos para ser "driblados" (e/ou conduzidos com sabedoria), é isso que importa: saber sambar.
Distante da ditadura da beleza física, o sujeito parece pensar junto da máxima de Jorge Mautner que diz que "belezas são coisas acesas por dentro, tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento". Portanto, "feio é ficar parada, emburrada, de perna cruzada, sem participar": feio é deixar que as adversidades (como o simples fato do cavalheiro ser feio, aos olhos comparativos dos padrões em voga, por exemplo) apaguem a coisa acesa da beleza, de viver.
Há uma relativização, graciosa, malandra e brejeira, das normas. O que é ser belo, de fato? Pergunta o sujeito. E lança uma observação que (quase) passa despercebida por quem lhe ouve: os versos "sinal de que sua autoestima anda em alta" põem em questão, também, a beleza da dama que se nega a sambar.
O sujeito recorre à figura mítica do grande dançarino Fred Astaire. (Re)conhecido pela ética e devoção (quase) obsessivas à sua arte, Astaire atravessa gerações como símbolo de condutor hábil e perfeito: as mulheres flutuam (em êxtase) nos braços de Astaire, qualquer sequência, de qualquer filme seu, mostra isso.
Unindo rigor e ar desleixado (aquela sensação que o espectador tem de que os movimentos são fáceis, mas que "escondem" ensaios exaustivos), Astaire aparece como modelo no qual o sujeito da canção "cola" para, pelo poder de sedução que tal imagem exerce sobre as mulheres (o do bom condutor), convencer a dama. Ou seja, já que ela faz charme (fica sentada e ainda torce o nariz), o sujeito apela para o maior. Aliás, Fred Astaire não dançava samba, mais uma qualidade, portanto, da personagem.
Mas, sem dúvida, a graça inabalável deste samba está na presença da voz de Pedro Miranda, em diálogo erótico-estético com a voz de Mário Adnet. Pedro, com seu timbre que parece carregar a tradição do morro, botequins e afins na garganta (tão belo é seu timbre!), e Mário justapõem dengos ("tem tanto mulher bonita que gosta de homem feio") e caprichos subjetivos ("não se pode mudar a natureza, tem sempre um caminho do meio"), convencendo a morena a prestar atenção naquilo que realmente interessa: ter samba no pé.
Assim, "Fred Astaire do samba" figura como samba canônico: os elementos de constituem a canção - o arranjo, a letra (aquilo que é dito) e a malemolência da interpretação - fazem o samba parecer antigo, mas, ao mesmo tempo, radicalmente, novo, simples e belo.

***

Fred Astaire do samba
(Mario Adnet / Chico Adnet)

Te chamei pra dançar
e você não quis
ficou sentada de perna cruzada
ainda torceu o nariz

Sinal de que a sua autoestima
anda em alta
mas não precisava humilhar
esse pobre infeliz

Se pareço estranho, creia
sou de fino trato
é só reparar na meia
e no meu sapato

Tem tanta mulher bonita
que gosta de homem feio
não se mudar a natureza
tem sempre o caminho do meio

Eu sou que nem Fred Astaire
sei conduzir a mulher
não sou padrão de beleza
mas tenho samba no pé

Vem morena, vem pra cá
feio é ficar parada, emburrada
de perna cruzada, sem participar

Vem morena, vem pra cá
vem fazer bonito
que o importante é sambar

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