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25 setembro 2010

268. Meu rádio e meu mulato

Regravada no bonito e homenagioso disco Memorável samba (2003), de Marcos Sacramento, "Meu rádio e meu mulato", de Herivelto Martins, é a voz de um sujeito que tenta usar o rádio como isca para o objeto de desejo: o mulato do título.
Colocando-se no lugar do não-cantor, o sujeito usa as sereias que tocam no rádio para seduzir o mulato: fazer o trabalho para ele. Aqui, a voz de Sacramento, aliada ao arranjo que remete o ouvinte a tempos outros (passados), sugere uma leitura homoerótica do discurso implícito à canção. E o rádio desliza de objeto a sujeito de sedução, mostrando sua importância no jogo erótico-afetivo. Afinal, ele é a caixa (de pandora?) que guarda os sons que queremos, e precisamos, ouvir.
Mas, antes de continuar desenvolvendo esta leitura, podemos suspender um pouco a direção reta e usar esta canção de 1938, de Herivelto Martins, como pretexto para pensarmos noutras pertinências possíveis. Por exemplo, o poder aglomerador do rádio.
Em tempos de mp3 e Ipod, quando o indivíduo pode carregar suas sereias na palma da mão e ter as experiências sonoras necessárias à vida onde quiser, mas de forma pessoal e restrita, aliás, o "I" que se prolifera (Ipod, Iped, Iphone...) é sintoma do assombroso movimento de individuação contemporâneo, a canção "Meu rádio e meu mulato" nos lembra o tempo em que, objeto (ainda) caro (o sujeito compra a prestação), o rádio, quando ligado em espaços onde sua presença era luxo (o morro, por exemplo), servia de convergência dos indivíduos. Afinal, todos queriam (e continuamos querendo e precisando) ouvir o canto e o cantar.
Enquanto hoje podemos acessar nossa sereia em qualquer lugar, e assim ter uma experiência isolada, nos primórdios da era do rádio (que nunca findou) havia uma quase ritualização em torno do objeto: menos para aqueles que não "tem coração", como sugere a canção, que é o caso do mulato desejado.
Com o tempo, com a evolução dos suportes midiáticos, e com a possibilidade do ouvinte poder ter em casa os discos do cantor preferido, e depois "aquela canção específica", ao que parece, perdemos esta capacidade de nos reunirmos em torno da sereia. Se antes, ligando o rádio na sala, ou, mais comumente, na cozinha, criávamos o mar de ondas sonoras para mergulharmos (ouvir a música pelo corpo todo), hoje, centrado no ouvido, parece que perdemos algo.
Óbvio, que há lugares em que esta prática (de ouvir o rádio a tardinha com os vizinhos, enquanto o café esquenta) ainda persiste.
Voltando ao sujeito da canção, já que seu mulato não vem, injuriado, ele pensa em vender o rádio, já que seus objetivos não estão sendo alcançados. O sujeito, que queria cantar o outro, através do rádio, e, por sua vez, alcançar a felicidade de se perceber cantado também, pela correspondência do outro, vê seu intento fracassar.

***
Meu rádio e meu mulato
(Herivelto Martins)

Comprei um rádio muito bom a prestação
Levei-o para o morro
E instalei-o no meu próprio barracão
E toda tardinha, quando eu chego pra jantar
Logo ponho o rádio pra tocar
E a vizinhança pouco a pouco vai chegando
E vai se aglomerando o povaréu lá no portão
Mas quem eu queria não vem nunca
Por não gostar de música
E não ter coração

Acabo é perdendo à paciência
Estou cansada, cansada de esperar
Eu vou vender meu rádio a qualquer um
Por qualquer preço, só pra não me amofinar
Eu nunca vi maldade assim
Tanto zombar, zombar de mim
Disse o poeta, que do amor era descrente
Quase sempre a gente gosta
De quem não gosta da gente

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