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11 setembro 2010

254. Morena dos olhos d'água

"Morena dos olhos d'água", de Chico Buarque é canção praieira-marinha: cada verso parece rios (significantes) que correm no desejo de cantar os olhos da morena. A profusão de termos que nos remetem à água (elemento líquido originário) adensam a construção da mulher que, da praia, chora a partida de seu homem: pescador que vai ao encontro de Iemanjá.
A canção é voz de consolo dirigida àquela que foi preterida: o pescador tem dois amores e, por hora, ele escolheu o bem-do-mar. O sujeito de "Morena dos olhos d´água", portanto, aproveita a fragilidade do bem-de-terra, canta-lhe a vida, restituindo-lhe à existência e conquistando a morena para si.
O canto tenta aquecer esta mulher que é todo-água: dos olhos voltados ao mar e, revés, do mar que lhe chama às lágrimas, refletindo-se e sendo extensão do olhos. A água e seu silêncio (ela, a morena, e água) são arrepiadas pela voz do sujeito da canção, que atravessa a tristeza da solidão.
O canto (mimo) do sujeito é a promessa do sorriso da mulher. Ele a recolhe no peito, faz dela canção e a devolve à vida, pelos mecanismos respiratórios próprios do canto. Ele é o cantor dela: dá a individuação que ela precisa, por estar liquefeita (disforme) na dor. O canto a salva da perda-de-si no mar do desconsolo.
Ele, sujeito "que jamais enfrenta o mar", ou seja, nunca irá deixá-la (troca-la pelos encantos das sereias, afinal ele é seria: canta a vida da morena), é o porto seguro: reserva de cantos e contos de histórias - narrativas necessárias à constituição do "eu".
O sujeito oferece à morena uma outra possibilidade de vida, ao vangloriar-se de suas vitórias e sonhos, sem deixar escapar o desejo de ser o novo homem, para ela. Afinal, se aquele que partiu tem "dois amores", ela também pode ter um outro: o cantor, que, com sua sensibilidade para entender os olhos d'água da morena, e traduzi-los em canção, é o alento urgente.
A repetição, cíclica e pontual, da palavra "morena", além de funcionar como o convite (chamada de atenção) do sujeito, marca o gesto de envolvimento que ele empreende sobre a morena: rede de significantes lançada a fim de "pescar" a morena, recolhida pela palavra (crepúsculo e aurora) imperativa "vem".
"Morena dos olhos d'água" vem na esteira (letra e melodia) das harmonias caymminianas. Aliás, a canção de Chico Buarque pode ser, como é sugerido aqui, ouvida, como um desdobramento de "O bem do mar", de Caymmi. Daí que a gravação de Gal Costa (Mina d'agua do meu canto, 1995), que entende bem o ritmo de Caymmi (basta ouvir o belo disco Gal canta Caymmi), alcança os níveis exatos de figurativização da cena que se desenrola na canção.

***
Morena dos olhos d'água
(Chico Buarque)

Morena dos olhos d'água
Tira os seus olhos do mar
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar

Descansa em meu pobre peito
Que jamais enfrenta o mar
Mas que tem abraço estreito, morena
Com jeito de lhe agradar
Vem ouvir lindas histórias
Que por seu amor sonhei
Vem saber quantas vitórias, morena
Por mares que só eu sei

O seu homem foi-se embora
Prometendo voltar já
Mas as ondas não têm hora, morena
De partir ou de voltar
Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também
Mas meu canto ainda lhe implora, morena
Agora, morena, vem

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