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17 setembro 2010

260. A ordem é samba

Para Jeane Araújo

A era da mobilidade: a globalização, que arrasta e põe em contatos (trans)culturais indivíduos e povos, impõe certas normas. Vira e mexe, alguma das partes envolvidas tem que ceder. Não falo da relação entre dominador e dominado, afinal não quero apontar a (forjada) ingenuidade deste, nem a (idealizada) superioridade intelectual daquele.
Falo daquilo que sobra das trocas, para o mal e para o bem, como na maioria das trocas. Muito se fala das perdas culturais do colonizado, apontando um lugar mítico que só existe na imaginação melancólica e saudosista: saudade no sentido do que poderia ter sido, e não é.
Penso nisso quando lembro de Culturas híbridas, o luminoso livro de Néstor Garcia Canclini. Aqui, o autor investiga, e tira conclusões lúcidas, sobre os processos de modernização das culturas dos países da América Latina: nossas contradições.
Penso nisso, também, quando ouço o paraibano Jackson do Pandeiro, ainda hoje, tocando nas rádios, tão atual: apontando os olhos grandes do Tio Sam (novos colonizadores) sobre nós e respondendo à altura: fazendo carnaval, como pensou Oswald de Andrade.
Não posso afirmar que Jackson, nosso grande ritmista, tivesse plena consciência de sua função, mas sinto pulsão de vida (e de resistência contra a morte), cultural, quando percebo o procedimento de hibridação (misturas sonoras e entoações labirínticas) e as soluções estéticas que ele propôs. Tudo tão "muderno" que parece que foi ontem, e foi.
Em "A ordem é samba", de Jackson do Pandeiro e Severino Ramos (Jackson do Pandeiro - O cabra da peste, 1966), já no título, podemos perceber a ironia do cancionista que tem sua gestualidade sendo ordenada por alguém de fora: uma ordem (sem rosto, mas impetuosa).
Aqui, referências à biografia do cantor ampliam a imersão na canção. Pós decreto que estabeleceu o samba como ritmo nacional, e pós Bossa Nova, os chamados ritmos nordestinos perdem espaço: a ordem é samba. Portanto, para se manter no centro das atenções (no Rio de Janeiro) e agradar seus ouvintes (ou seria ao mercado?) o nordestino do coco, das salas de reboco, precisa seguir a ordem: ter e cantar sambas, e nada mais.
O irônico é que "A ordem é samba", ouvida com atenção, vai muito além do samba. A sofisticação simples, resultado da complexa mistura de instrumentos, oferece ao ouvinte um (trans)samba: uma peça sonora híbrida, miscigenada, como a própria esteira cultural na qual a canção é composta.
Jackson dá um nó no entendimento e na "definição" dos gêneros: coloca-os no liquidificador (todo brasileiro). E agrada nordestinos e cariocas. "É samba que eles querem? Eu canto, mas do meu modo. Plasmando as imagens (sonoras) de minha história", parece ser o que diz, nas entrelinhas, o cantor.

***

A ordem é samba
(Jackson do Pandeiro / Severino Ramos)

É samba que eles querem
Eu tenho
É samba que eles querem
Lá vai
É samba que eles querem
Eu canto
É samba que eles querem
E nada mais

No Rio de Janeiro
Todo mundo vai de samba
A pedida é sempre samba
E eu também vou castigar

Lá vai, lá vou eu de samba
Somente samba
A ordem é samba
E nada mais

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