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26 junho 2010

177. Apenas um rapaz latino-americano

A música e a poesia de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes tem raízes nas feiras do Ceará. Mais tarde, o repente encontrou o piano e o canto coral e fez das composições de Belchior peças únicas e bem cuidadas em que as fronteiras entre conhecimento erudito e cultura popular estão borradas.
"Apenas um rapaz latino-americano" (Alucinação, 1976) é metacanção: canção que não esconde que é canção: "Isso é somente uma canção", ou seja, não tem a falsa e ilusória pretensão de ser real. Ela caminha, e sabe disso, pelo plano da ficção.
Escrita em primeira pessoa, a letra coloca o sujeito diante de suas certezas (ser um rapaz latino-americano) e suas dúvidas (como fazer uma canção suave sendo deste lugar?). Na verdade, o sujeito tensiona e equilibra a (quase) irrespondível pergunta: o que é ser latino-americano?
Ele dá pista: recorre à história (não ter parentes importantes); à cultura (a referência à canção "Divino maravilhoso", do baiano Caetano Veloso); e ao universo ao redor (a audição da diversidade sonora latino-americana).
Metacanção (canção que “come” a si mesma), "Apenas um rapaz latino-americano" se desdobra para fora (cita versos de outra canção: "Divino maravilhoso", de Caetano Veloso) e para dentro ("Isso é somente uma canção", diz) de si.
Há outros filigranas que reiteram isso. Por exemplo, o fato do sujeito afirmar, dentro da canção, que não consegue fazer uma canção sem dizer aquilo que sente: a dor de ser "apenas" um latino-americano. Apesar de afirmar também, que a canção não é a realidade, que esta "ao vivo é muito pior". Ou seja, desconstrói a ideologia de que "tudo é divino, maravilhoso". Nada o é.
Entre ironia e imagens de horror, o sujeito ainda traz, por reminiscência outro verso (de fora): "eu queria dizer que tudo é permitido", de viés dialoga com "É proibido proibir" verso de um canção (de mesmo nome), também de Caetano.
"Apenas um rapaz latino-americano", deste modo, estabelece um diálogo contestador e, porque não, enriquecedor com a mensagem tropicalista. A canção de Belchior tenta ser a tradução daquilo que é ser latino-americano, algo distante da mistura colorida, a princípio, identificada na trupe da Tropicália.
E ainda, os versos "tudo é permitido / até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê" traz, também por reminiscência do ouvinte (aliás, a canção de Belchior é toda trabalhada para ter sua mensagem entendida claramente pelo ouvinte), a tona os versos de "Splish, splash", do jovemguardista Roberto Carlos. Outro desdobrar-se "para fora" da canção "Apenas um rapaz latino-americano".
Belchior empresta voz a um cantor ("eu sou apenas um cantor") que canta outra verdade: mais real, em seu entender. No entanto, ele sabe que a verdade (a vida realmente) é incapturável e canta exatamente, entre hesitações e auto-correções ("sei que tudo é proibido, aliás, eu queria dizer que tudo é permitido") a impossibilidade de cantar (traduzir em uma canção) a vida latino-americana.

***

Apenas um rapaz latino-americano
(Belchior)

Eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior

Mas trago na cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino, tudo é maravilhoso

Tenho ouvido muitos discos, conversando com pessoas
Caminhado o meu caminho, papo o som dentro da noite
E não tenho um amigo sequer que ainda acredite nisso não
Tudo muda, e com toda a razão

Eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior

Mas sei que tudo é proibido, aliás, eu queria dizer que tudo é permitido
Até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê

Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Som, palavras são navalhas e eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém

Mas não se preocupe, meu amigo com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente quer dizer, ao vivo é muito pior

Eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco
Por favor não saque a arma no saloon, eu sou apenas um cantor

Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar
Mate-me logo à tarde, às três que à noite eu tenho compromisso
E não posso faltar por causa de você

Eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior

Mas sei, sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é secreto
Nada, nada é misterioso não

3 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Belchior foi um grande letrista nos anos 70.me parece que perdeu a régua e o compasso,como a maioria de seus contemporâneos.ou falta divulgação,sei lá.

Anônimo disse...

Belchior era um tesla das palavras .

Anônimo disse...

Muito boa a sua análise.