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20 junho 2010

171. Meia lua inteira

Para Edilene Fonseca

Em 1989 Caetano Veloso lança o disco Estrangeiro, que traz entre suas dez faixas a canção “Meia lua inteira”, de Carlinhos Brown. No livro Verdade tropical (1997), Caetano afirma que Brown “reúne em si os elementos de reafricanização e neopopização da cidade”, o que, sem dúvidas, coloca o criador da Timbalada na linha evolutiva da canção pós-Tropicália.
Caetano e Brown se aproximam pelo uso do jogo como recurso artístico; e por retomarem, direta ou indiretamente procedimentos utilizados pelo poeta, também baiano, Gregório de Matos. Basta lembrar a gravação de “Triste Bahia”, feita por Caetano para o disco Transa (1972), com a atualização do poema “À cidade da Bahia”, de Gregório: "Triste Bahia".
“Meia lua inteira” é um exemplo da aproximação entre Brown e Gregório (via o canto de Caetano) pois ela dialoga com a estrutura formal do soneto gregoriano “O todo sem a parte não é todo”. Através do jogo lúdico, o poema persuade o leitor a aceitar que mesmo tendo sido achado “apenas” uma parte do menino deus (um braço), esta parte deve ser adorada com a mesma fé tal e qual ali estivesse "Deus todo".
O jogo de palavras obscurece a razão, adensa a linguagem e a intenção persuasória, argumentativa e lúdica. Assim, quebra-se a linearidade da língua e o estranhamento é gerado.
A consciência da linguagem trabalhada por Gregório de Matos está presente em “Meia lua inteira” (nome de um golpe de capoeira), de Carlinhos Brown, em que o ouvinte é tentando a concluir que a meia lua é a lua inteira.
A letra apresenta uma multiplicação de imagens do todo pela parte: o “cocar de coqueiro baixo”: remete à capoeira; “bimba e birimba”: reduções afetivas da palavra berimbau; e a expressão “taco de arame, cabaça, barriga”: partes do berimbau. Já “martelo do tribunal”: denota tanto “martelo”, um golpe de capoeira; quanto “do tribunal”: remete à ordem oficial que proibiu o jogo de capoeira por bastante tempo no Brasil.
Mas, quem é o “grande homem de movimento, pego sem documento, caminhando contra o vento”? Parece que esta proliferação de significantes que aponta, a princípio, para o próprio jogador de capoeira em seus movimentos de corpo e fugas da polícia, faz referência à letra de “Alegria, alegria”, de Caetano: “caminhando contra o vento / sem lenço, sem documento”. E também referencia a letra de “Tropicália”: “Eu organizo o movimento”.
Seja como for, "Meia lua inteira" é uma alegria sonora e rítmica em que o corpo é convidado à festa da afirmação da vida (inteira): Viva a Bahia ia ia ia ia!

***

Meia lua inteira
(Carlinhos Brown)

Meia lua inteira sopapo
Na cara do fraco
Estrangeiro gozador
Cocar de coqueiro baixo
Quando engano se enganou

São dim, dão, dão
São Bento
Grande homem de movimento
Martelo do tribunal
Sumiu na mata adentro
Foi pego sem documento
No terreiro regional

Uera rá rá rá
Uera rá rá rá
Terça-feira
Capoeira rá rá rá
Tô no pé de onde der
Rá rá rá rá
Verdadeiro rá rá rá
Derradeiro rá rá rá
Não me impede de cantar
Rá rá rá rá
Tô no pé de onde der
Rá rá rá rá

Bimba birimba a mim que diga
Taco de arame, cabaça, barriga
São dim, dão, dão
São bento
Grande homem de movimento
Nunca foi um marginal
Sumiu na praça a tempo
Caminhando contra o vento
Sobre a prata capital

15 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu achava que essa letra fosse só um jogo de palavras sem significados.O que pode esta língua?

João M. A. da Silva disse...

Ela tem uma pequena história sim, mas o destaque para mim é a melodia o ritmo tropical.

Anderson Viana disse...

Muito boa essa abordagem sobre a música!!!

Gostaria só de acrescentar alguns detalhes:

"Bimba Biriba a mim que diga", referi-se ao mestre Bimba que foi discípulo do grande mestre Pastinha considerado o pai da capoeira Angola no Brasil. Bimba introduziu outros elementos na Capoeira Angola, tais como o Maculelê, e assim criou o estilo de Capoeira Regional da Bahia que tem uma função mais aguerrida voltada para defesa e o ataque.

O grande "Homem de Movimento" era a figura do revolucionário da Capoeira que resistia e contrariava a lei de proibição de sua prática.

"Sumiu na mata adentro, foi pego sem documento em um Terreiro Regional", era assim que esses libertários conseguiam fugir da polícia, entrando nos esconderijos das matas e se refugiando nos Terreiros de Candomblé, que também muitas vezes sofriam perseguição por praticarem o culto aos Orixás.

Para finalizar o refrão dessa versão de Caetano é diferente da original de Carlinhos Brown.

O refrão original é: "Ogunhê Iêêêêê Ogum!!!"

Isso temtoda lógica, pois Ogum é o Orixá guerreiro patrono da capoeira, e seu dia da semana é a terça-feira. Por isso o refrão canta: "Terça-feira Capoeira rá rá rá rá"

Anderson Viana

Cosmicídio Atômico disse...

A partir do falado acima, acho que dá pra tentar completar a pequena história. Um capoeirista que dá um golpe num estrangeiro gozador, e é por isso condenado no tribunal, mas foge mata a dentro e continua se movendo por onde dá, entre terreiros e praças.

Unknown disse...

"Dim dão dão" seria o som so berimbau?

italo disse...

Creio que sim

profs.aranha disse...

Muito bom. Valeu

Fe Garavelo disse...

Amei!!!

Dani-se! disse...

👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

EVANGELISTA disse...

Muito bom!!!

Martha disse...

Muito boa essa sua análise que resgata a memória de Mestre Bomba.

Unknown disse...

Era criança quando essa música fez sucesso em tieta, adorava mas não entendia nada. Hoje resolvi aproveitar a internet pra aalgo útil e finalmente entendi o que ela queria dizer. Muito legal!!!
Renata

Vilsom Mattos disse...

Este ultimo verso me parece ser sobre o proprio Caetano, como o "homem de movimento" (tropicália) remetendo a resistencia a ditadura, "nunca foi marginal" pelas prisões e tratamento e perseguição que se dva a quem se opunha ao regime, "sumiu na praça a tempo, caminhando contra o vento", aqui sobre o exilio de Caetano

Mas esta é a verdadeira essencia de uma obra de arte de ter varios significados, depemdendo da perspectiva individuaal de cada admirador.

Anônimo disse...

Show

Anônimo disse...

Qual seria o ritmo dessa música?