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19 junho 2010

170. O barquinho

Já está mais do que claro que a bossa nova não surgiu da noite para o dia ("a evolução não dá saltos", diria um amigo). Obviamente, o uso do termo "evolução" aqui não se refere a certo sentimento de melhoramento do que surge, em detrimento ao que passou, mas, e isso é mais importante, do "tempo que corre": do barquinho que desliza e vai. Falo da "retomada da linha evolutiva" da MPB referendada por Caetano Veloso em 1966.Ou seja, o (re)arranjo criativo do lastro de nossa cultura sonora, musical e cancional.
Dito isto, Barquinho (1960) é a mais completa tradução deste pensamento. Ele apresenta a dona da voz do samba canção de fossa (das madrugadas insones, maquiagens pesadas e das separações trágicas) sob um céu azul, mesmo vestida de preto, e entoando as letras solares (a calma de verão) da bossa nova.
Importa lembrar que dois anos antes foi lançado o antológico Chega de saudade, de João Gilberto. Portanto, o disco de Maysa, podemos dizer, aparece em um período maneirista (de transição/afirmação) da nova sonoridade.
É deste modo que Barquinho agrega os novos valores - dias tão azuis - à voz impagável de Maysa: de tão quente e rouca (noturna). A persona flâneur que percorre os bares de noite, caminha agora até o mar, de dia. O vigor emocional da intérprete de "Meu mundo caiu" se une às letras de luz e festa da nova onda. Onda que precisou da assinatura de cantores da "velha onda" para se firmar e penetrar no grande público: basta pensar, além de Maysa, na divina Elisete Cardoso e seu Canção do amor demais (1958).
"O barquinho", de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, clássico absoluto da bossa nova, possibilita a Maysa o balanço exato de sua poderosa voz: ecos do amor mais triste (não se nega a natureza, diria outro amigo) dançando ao ritmo do mar (tudo verão).
Quem disse que a tristeza não ri? Ainda mais através de uma canção (sem intenção?) ao ritmo do balanço do mar, em que o deslizar do barquinho inspira (e imprime no pulso da melodia) a vontade de cantar.

***

O Barquinho
(Ronaldo Bôscoli / Roberto Menescal)

Dia de luz, festa de sol
Um barquinho a deslizar no macio azul do mar
Tudo é verão, amor se faz
Num barquinho pelo mar que desliza sem parar
Sem intenção, nossa canção
Vai saindo deste mar e o sol

Vejo o barco e luz, dias tão azuis

Volta do mar, desmaia o sol
E o barquinho a deslizar e a vontade de cantar
Céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho ao coração deslizando na canção
Tudo isso é paz, tudo isso traz
Uma calma de verão e então

O barquinho vai, a tardinha cai

Volta do mar, desmaia o sol
E o barquinho a deslizar e a vontade de cantar
Céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho ao coração deslizando na canção
Tudo isso é paz, tudo isso traz
Uma calma de verão e então

O barquinho vai, a tardinha cai

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Gostei de sua explicação pra "linha evolutiva",quase sempre,quem fala de bossa nova,deixa entrever que a boa música e a boa interpretação nasceu ali.