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13 junho 2010

164. Travessia

"Travessia" é a última palavra do livro Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Mas, muito além de ser o fim, "travessia" é o meio, é o deslocamento permanente (doloroso e gososo) da consciência de que "o diabo não há (...) o que existe é homem humano": a certeza (cruel, mas luminosa) de que meu melhor amigo e inimigo sou eu mesmo: minhas conquistas e limitações diárias, enquanto atravesso o deserto de minha existência. Ir, ir indo.
O livro de Rosa é, sem dúvidas, pelo trato sintático e imagens deslumbrantes, um dos textos (sobre a existência) mais belos que a mente humana já criou. Rosa justapõe deus e diabo (frente a frente, lado a lado, dentro a dentro) no indivíduo, para desdobrar (para dentro e para fora) a inatingível realidade (voltas para o frio da razão) do sujeito posto no mundo.
É uma pena que a minisérie televisiva tenha destruído isso ao colocar a linda (e já conhecida do grande público) Bruna Lombardi como intérprete do jagunço Diadorim, amor (e dor, sem rimas piegas) do jagunço Riobaldo. Ao definir, de início, o sexo do mistério, o poder significativo, circunspecto, da obra é bruscamente reduzido. O demo sai do reDEMOinho. A rosa é expulsa do Rosa.
Milton Nascimento, ciente dos limites borrados entre literatura e música (palavra e melodia, real e ficção), restitui a glória e a desgraça do jogo amoroso de Rosa, ao criar uma canção em ondas, em que o sujeito longe do outro (sem sexo) canta o desencanto. "Amor? Pássaro que põe ovos de ferro".
"Travessia", Milton e Fernando Brant, do disco Travessia (1967), dá voz ao sujeito deslocado, desterritorializado e inadaptado no mundo e em si: Riobaldo, personagem de Rosa e nossa metáfora e metonímia.
Fechar o pranto, desacreditar na possibilidade, é se matar. Os paradoxos e as contradições do sujeito solto na estrada põem a vida para girar: "Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver". Canto em qualquer canto.

***

Travessia
(Milton Nascimento / Fernando Brant)

Quando você foi embora fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho prá falar

Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar

Vou seguindo pela vida me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte, tenho muito que viver
Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver

Um comentário:

Darlan disse...

Eu gostotanto dessa música, e acho tão tão linda! Mas desde que ouvi a Björk cantando-a, não consigo não rir um pouquinho quando ouço, lembrar é inevitável.