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28 outubro 2010

301. Além do que se vê

A canção "Além do que se vê", de Marcelo Camelo, estabelece um diálogo amoroso com o livro A hora da estrela, de Clarice Lispector. Seja no plano temático, por narrar (cantar) a vida de uma moça; seja no plano da intimidade da personagem, por contar a solidão do indivíduo que tem sua hora de estrela engendrada no canto: a moça sem nome, na canção de Camelo; e Macabéa, no livro de Lispector.
Quando o narrador de A hora da estrela se pergunta "Por que escrevo?", e responde que é "por motivo grave de 'força maior', como se diz nos requerimentos oficiais, por 'força de lei'", está, de viés, respondendo também à uma pergunta que atravessa (silenciosamente ruidosa) o sujeito da canção "Além do que se vê": Por que canto?
Canto para lidar com minha solidão: canto (escrevo) para me manter vivo, sugerem, portanto, o narrador de Macabéa e o sujeito da canção. Cantar (escrever) é dizer SIM à existência: assumir a solidão imensurável, abrandada nas horinhas de amor: de canto, pois quando conto o outro, além de mostrar meu amor (de sereia) a ele, afirmo-me vivo, dou sentido ao caráter ilógico da existência ("Existir não é lógico", diz o narrador de Clarice), descuido de mim e sou feliz. Viver, assim, é saber que "o vento que entortou a flor" passa "também por nosso lar", e me torna bamba.
"Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite", define-se o narrador de A hora da estrela. "Sei que a tua solidão me dói e que é difícil ser feliz, mas do que somos todos nós você supõe o céu", canta o sujeito de "Além do que se vê". E a vida é um bloco do eu sozinho, para os dois.
O contato entre o criador e sua criatura identifica a ambos. Viver é bom nas curvas da estrada: quando me distingo na distinção distraída que componho para o outro. Guardada no disco Ventura (2003), do grupo Los Hermanos, "Além do que se vê" é um recado (escrito e cantado: "Moça, olha só o que eu te escrevi") ao ouvinte-destinatário: "É preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê".
E é o amor o que ninguém mais vê. Amor que leva o sujeito a cantar, a compor uma história mais real (porque fictícia) para a moça. Ela tem sua hora de estrela, "voa mais", para além da solidão (que nada), na voz do sujeito que lhe canta. Amor que aglomera: "põe mais um na mesa de jantar"; que a tudo está atento: "tira o som dessa TV pra gente conversar"; e que faz a moça brilhar: "é bom te ver sorrir, deixa [o sorriso] vir à moça".

***

Além do que se vê
(Marcelo Camelo)

Moça, olha só o que eu te escrevi
É preciso força pra sonhar e perceber
que a estrada vai além do que se vê
Sei que a tua solidão me dói
e que é difícil ser feliz
mas do que somos todos nós
você supõe o céu
Sei que o vento que entortou a flor
passou também por nosso lar
e foi você quem desviou
com golpes de pincel

Eu sei, é o amor que ninguém mais vê
Deixa eu ver a moça
Toma o teu, voa mais
que o bloco da família vai atrás

Põe mais um na mesa de jantar
por que hoje eu vou pra aí te ver
e tira o som dessa TV
pra gente conversar
Diz pro bamba usar o violão
pede pro Tico me esperar
e avisa que eu só vou chegar
no último vagão

É bom te ver sorrir
Deixa vir à moça
que eu também vou atrás
e a banda diz: assim é que se faz

Um comentário:

O Neto do Herculano disse...

Ao lado de "O Vencedor", uma das melhores canções dos hermanos, muito bem acabada e construida.