Pesquisar canções e/ou artistas

21 agosto 2010

233. Manjar de reis

"Manjar de reis", de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, é daquelas canções que a estrutura formal da letra e da melodia auxilia (muito) o entendimento daquilo que é cantado. A melodia festiva (e acelerada) aponta para a urgência do instante presente cantado.
Composta por dísticos (estrofes rimadas e ritmadas por dois versos), a letra aponta a relação entre o eu, que canta, e o tu, destinatário do canto: o tu, manjar de reis, e o eu, rei.
Sugere-se, então, uma relação senhor/vassalo (dominador/dominado): em que um - rei - prova o outro - manjar de reis. Aliás, manjar, como sabemos, na tradição mítica da cultura, é sinônimo de iguaria deliciosa, só degustada por quem tem poder e é merecedor.
No caso da canção "Manjar de reis", há um gesto homoerótico que vaza e se dissemina: a descrição de um ato de sexo oral entre dois sujeitos masculinos. Quem canta, sendo rei (dono da situação, afinal é ele quem canta), pede a inversão de papéis. Se até então era ele quem estava se refestelando com o manjar, a partir de agora será o outro quem irá chupar um sugestivo picolé.
Aliás, a imagem do picolé é importante: mostra o sujeito se fingindo menor (enquanto o outro é manjar ele oferece um simples picolé) para persuadir o outro a praticar o ato desejado. O rei se põe vassalo (desloca sua atuação) para, brincando com as certezas do outro (inferior no jogo), apenas confirmar sua posição de senhor das ações.
Na arte de amar, o jogo erótico deve ser desinibido: livre de travas que impeçam o prazer dos amantes. Para dar tudo certo na hora da cama, o sujeito pede a nudez total do outro. A expressão lúdica "Quero que sem timidez tu me dês tudo que tu és" (desdobrando-se sintática e semanticamente para dentro e para fora de si) corrobora o desejo de todo o prazer que vem do corpo.
Como a alma sem corpo, sem pele, o sujeito da canção quer deslimitar seu parceiro. A interpretação que o próprio Jorge Mautner e Caetano Veloso lançaram ao público em 2002 (no disco Eu não peço desculpa) intensifica, jogando com as sobreposições das vozes masculinas, o desejo cantado pelo sujeito.
A gravação de Sílvia Machete (Extravaganza, 2010) investe na perícia acrobática (nudez da cabeça aos pés) para cantar a potência homoerótica da canção. De fato, pela força e presença física de Sílvia, cantora-performatriz, a canção pode ser ouvida como a voz de uma mulher que joga com seu parceiro sobre as posições impostas pela normalidade social para as práticas sexuais.
A voz que Silvia empresta à canção complexa, alegre e festiva (nudez total: afirmação e mergulho no desejo) do nosso guia Jorge Mautner, portanto, se infiltra na norma, dissemina novas possibilidades de prazer, desconstrói a norma canta e é feliz.

***

Manjar de reis
(Jorge Mautner / Nelson Jacobina)

Tu és manjar de reis
dos mais finos canapés

Mas agora é minha vez
de te fazaer mil cafunés

Quero a tua nudez
da cabeça aos pés

Quero que sem timidez
tu chupes picolés

Quero que tu me dês
Tudo que tu és

Que que tu me dês
Tudo que tu és

2 comentários:

Thiago Augusto Corrêa disse...

Há de se perceber que muitas palavras estão sendo utilizadas por conta do ritmo, não de seu significado óbvio.

Não vejo a canção como vassalo e rei de nenhuma maneira, mas sim uma forma poética, não notada por sua análise, que tece elogios sobre a beleza de alguém possivelmente amado com a intenção se seduzi-lo.

Se a idéia dos picolés sugere uma homo erotização, basta se debruçar em dois ou três álbuns de Jorge Mautner para notar que o mesmo faz uso de humor em suas letras. O uso dessa imagem cria humor inusitado.

O picolé passa de um alimento inocente para uma sedução. Não há necessariamente a grosseria de ser um pênis, o que reduz a letra de um apelo amoroso universal. Não é o caso, por exemplo, de Amor Mais Que Discreto, de Caetano, que explicita uma relação dessa maneira.

Leonardo Davino disse...

Prezado Thiago, agradeço a visita e os comentários.

Porém, preciso fazer umas ressalvas:

A minha leitura é uma possibilidade de leitura: ela não quer ser a leitura definitiva da canção.

Sim, o ritmo aqui é fundamental para entender o lúdico em Jorge Mautner: inocência e esperteza estética.

Não entendi a relação que você sugeriu entre "pênis" e "grosseria"... onde está a grosseria na insinuação peniana que faço na minha análise?

O jogo vassalo e rei se sustenta na leitura que fiz, mas, obvio, não reduz o poder poético e estético - passíveis de outras leituras - da canção, repito.

O significado está na interpretação e aqui tentei oferecer uma.

Agradeço a atenção