Pesquisar canções e/ou artistas

03 agosto 2010

215. Água da minha sede

A certa altura de Noites do sertão, Guimarães Rosa deixa escapar: "Amor é sede depois de se ter bem bebido". Este aforismo iluminado parece ser o mote para a canção "Água da minha sede", de Roque Ferreira e Dudu Nobre. Mas, antes de enveredarmos pela literatura que atravessa a canção (e vice-versa), vejamos algumas observações gerais.
O disco Quando o canto é reza - Canções de Roque Ferreira (2010), de Roberta Sá e Trio Madeira Brasil - formado por Zé Paulo Becker (violão de seis cordas e viola caipira), Marcello Gonçalves (violão de sete) e Ronaldo do Bandolim - é um dos discos mais belos que ouvi. Do começo ao fim, há uma vereda atravessando o sertão caipira (caboclo, mulato) cantado por Roque Ferreira: este compositor que só engrandece a força da canção popular brasileira.
A homenagem feita por Roberta e TMB é um presente aos ouvidos. Aqui o canto se faz reza, de fato: ligação do humano consigo mesmo e com algo (superior) indescritível, mas que nos faz cirandar junto com a vida. Os arranjos são sublimes e a voz de Roberta Sá está mais que demais. O resultado é o avesso do bordado: o lado bom da vida.
A evocação à Guimarães Rosa não é sem sentido. Roque Ferreira, assim como o autor de Grande sertão: veredas, trabalha (joga) com elementos simples: filigranas colhidas da cultura popular de um Brasil profundo (oral) e "traduzidas" para o consumo mediático, sem afetação ou exotismo. Ambos trazem para a gira signos que nos compõem.
O sujeito de "Água da minha sede", uma das poucas inéditas do disco, canta a beleza de ter sua sede (de amor e de vida) saciada. A entrada do outro (na roda) trouxe encanto: motivo de viver. Diferente da versão cantada por Zeca Pagodinho (2000) - que investia no samba que dá a base para o outro girar - Roberta Sá e Trio Madeira Brasil investem no desenho da rede que prende o sujeito espalhando um clima de paixão: acordes lentos (e virtuosos) e entoação mais passional.
A mudança na moldura melódica e entoativa dá à canção ar de novidade, àqueles que já conhecem a gravação de Zeca. Seja como for, a canção esquema o coração. Em tempos caretas, politicamente corretos e neopentecostais, como o nosso, a obra de Roque Ferreira faz vibrar (e dançar) nossos signos africano-mestiços, distante da falsa moral.
A ética religiosa que alimenta as canções é a afirmação do sagrado como festa da existência. Roque Ferreira combina os deuses que dançam com o corpo (humano) que incorpora tais deuses: balé de sereia.
Riobaldo, de Grande sertão: veredas, afirma que "sede é a situação que é uma só, mesmo, humana de todos". Se o sujeito da canção se sacia com a entrada do outro na roda (leque de ritmos), nós, ouvintes, saciamos a sede (de vida: de canto) na audição de canções belas assim.

***

Água da minha sede
(Roque Ferreira / Dudu Nobre)

Eu preciso do seu amor
Paixão forte me domina
Agora que começou
Não sei mais como termina
Água da minha sede
Bebo na sua fonte
Sou peixe na sua rede
Por do sol no seu horizonte

Quando você sambou na roda
Quando você sambou na roda
Fiquei afim de te namorar
Fiquei afim de te namorar

O amor tem essa história
Se bate já quer entrar
Se entra não quer sair
Ninguém sabe explicar

O meu amor é passarinheiro
O meu amor é passarinheiro
Ele só quer passarinhar
Ele só quer passarinhar

Seu beijo é um alçapão
Seu abraço é uma gaiola
Que prende meu coração
Que nem moda de viola

Na gandaia (na gandaia)
Fruto do seu amor me pegou (na gandaia)
Sua renda me rodou (foi a gira)
Foi cangira que me enfeitiçou
Apaixonado
Preciso do seu amor

Um comentário:

ademar amancio disse...

Não conheço essa música,mas a letra é interessante,e sua rápida dissertação melhor ainda.