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30 junho 2010

181. Fogueira

As canções compostas por Ângela Ro Ro soam sempre íntimas, pessoais e intransferíveis; tocam intensamente o ouvinte exatamente pelo clima de cumplicidade que vaza das letras e da melodia (e interpretação) passional; mexem com sentimentos que preferimos que fiquem quietos.
Mesmo nas canções mais irônicas, e Ro Ro sabe usar a autoironia como ninguém (sabe rimar amor e dor sem falsas autopiedades), talvez por isso mesmo, as canções soam como reverberações autoconfessionais, atingindo em cheio o ouvinte: afinal, somos diferentes (cada um tem sua singularidade inapreenssível), mas estamos expostos (guardadas as diversas matizes) às mesmas inquietações.
"Fogueira", do disco A vida é mesmo assim (1984), é um exemplo do claro instante em que o sujeito exige a atenção do outro: por que acender um desejo se temes a minha fêmea? O sujeito se entrega de forma contundente: "eu sou tua, me ama".
O sujeito chama (e inflama) o outro para viver o amor (sem dor), O tempo passa e as mágoas devem ser esquecidas, a fim de que só o amor sobreviva e viva o encontro amoroso: agressivamente sensual.
O sujeito quer que as labaredas lambam seu corpo, assim como a língua em chamas do amante. Ele se atira no labirinto de paixões despertado pelo outro. Quer cantar isso. E canta: faz da provável impossibilidade erótica um canto de lamento e elegia: me deixa gozar.
As contradições (bem e mal; amor e dor), que se autodevoram, apertam a sensação do sujeito que não encontra outra forma de deixar o desejo escapar senão cantando: a urgência de se fazer uma canção, o sangue do amor.
Ele canta a velha história, mas que sempre ressurge com o vigor de inédita: o amor. A descoberta, eternamente nova, de se perceber apaixonado. Se a vida é fugaz, o amor não. Porém, sem retorno, o sujeito dá a outra face: a dor.

***

Fogueira
(Angela Ro Ro)

Por que queimar minha fogueira?
E destruir a companheira
Por que sangrar o meu amor assim?
Não penses ter a vida inteira
Para esconder teu coração
Mas breve que o tempo passa
Vem num galope o meu perdão

Porque temer a minha fêmea?
Se a possuis como ninguém
A cada bem do mal do amor em mim
Não penses ter a vida inteira
Para roubar meu coração
Cada vez é a primeira
Do teu também serás ladrão

Deixa eu cantar
Aquela velha história, o amor
Deixa penar, a liberdade está (também) na dor

Eu vivo a vida inteira
A descobrir o que é o amor
Leve pulsar do sol a me queimar
Não penso ter a vida inteira
Pra guiar meu coração
Eu sei que a vida é passageira
E o amor que eu tenho não!

Quero ofertar
A minha outra face à dor
Deixa eu sonhar com a tua outra face, amor

29 junho 2010

180. Baby

A tropicalista canção "Baby", de Caetano Veloso, já mereceu algumas ótimas gravações (desde a histórica versão de Gal Costa, 1968 - meio bossa nova e rock'and'roll). A tradução para o inglês, feita por Os mutantes (no disco Jardim elétrico, 1971), foi recuperada por Bebel Gilberto (Bebel Gilberto, 2004).
Os mutantes, além da letra, traduzem a cultura (as informações e as imagens são desviadas a fim de gerar novos significantes) da canção de Caetano. Enquanto Bebel traduz o estilo dos Mutantes. Traduz e cria elementos tão díspares quanto complementares: a transculturação, que implica no contato, assimilação (comida) e tradução (digestão e mistura) de culturas. Gesto bem caro ao pensamento antropofágico do Brasil.
Entre outros deslizamentos significativos, se na canção de Caetano o sujeito pede para o outro "aprender inglês" (a fim de ler a declaração: I love you), o sujeito da "Baby" dos mutantes mostra que seguiu o conselho traduzindo e criando um canto paralelo.
Os idiomas português e inglês (americano?) se tocam, dialogam e se devoram. Além do claro jogo lúdico do intertexto entre as línguas, a ironia (típica dos mutantes) fica por conta de criar uma canção sobre uma canção já existente: sai de cena carolinas, margarinas e lanchonetes, e entram "the teeth of your friend" e "The dirt in my hand".
Entram "as mãos sujas do sangue das canções": verso de "Drama", de Caetano Veloso, interpretada por Maria Bethânia que, por sua vez, sugeriu que Caetano compusesse "Baby". Vemos assim que temas e mitemas circulam (no eterno retorno) adensando a identidade da canção brasileira.
Bebel Gilberto (com o cuidado no repertório que lhe é peculiar) investe tanto no mesmo arranjo (introdução com guitarra, seguidos por estalidos que remetem ao som de um "sino de boi" nordestino, além do piano) desenhado por Os mutantes,quanto na entoação que se aproxima muito da entoação de Rita Lee.
A atmosfera bossa nova (de praia e sol), ampliada pelo registro da respiração de Bebel (um "q" de êxtase), abrindo a canção, atravessa, com requinte e sofisticação, a "Baby" de Bebel. De fato, o verso "hear the new sound of my bossa nova" parece querer traduzir a obra de Bebel: sua bossa nova singular.

***

Baby
(Caetano Veloso / Mutantes)

You know, you must take a look at the new land
The swimming pool and the teeth of your friend
The dirt in my hand
You know, you must take a look at me
Baby, baby
I know that's the way
You know, you must try the new ice cream flavor
Do me a favor, look at me closer
Join us and go far
And hear the new sound of my bossa nova
Baby, baby
It's been a long time
You know, it's time now to learn Portuguese
It's time now to learn what I know
And what I don't know
And what I don't know
And what I don't know
I know, with me everything is fine
It's time now to make up your mind
We live in the biggest city of South America
Of South America
Of South America
Look here, read what I wrote on my shirt
Baby, baby
I love you
You do

28 junho 2010

179. Disparada rap

Em seu imprescindível texto A fratria órfã, a psicanalista Maria Rita Kehl faz lúcidas abordagem e análise sobre o esforço civilizatório do rap. Entre outros aspectos, a autora escreve que se por um lado os rappers "parecem interessados em radicalizar um discurso contundente de oposição", por outro lado, a consciência e a atitude (cuja força vem do investimento na palavra) significam "orgulho da raça negra e lealdade para com os irmãos de etnia e de pobreza".
Recusando a postura de pop star os rappers falam para seus semelhantes: os jovens da periferia. O sentimento de proximidade daquilo que é dito (cantado) com a realidade do ouvinte (que precisa preparar o coração para ouvir a realidade cantada) é a meta do rapper. "As letras são apelos dramáticos ao semelhante": os manos. Ainda para a autora citada acima, "a designação de 'mano' faz sentido: eles procuram ampliar a grande fratria dos excluídos, fazendo da 'consciência' a arma capaz de virar o jogo da marginalidade".
Dito isso, pensar sobre a versão que o rapper Antônio Luiz Júnior - o Rappin Hood - fez para a clássica e canônica "Disparada", de Téo de Barros e Geraldo Vandré, amplia nossa consciência das verdades brasileiras. A "Disparada rap" de Rappin Hood, registrada no disco Sujeito homem 2, 2005 (um disco assumidamente brasileiro: cheio de misturas luminosas e iluminadoras), além de evocar o castigo da seca, aponta para onde os retirantes (ainda) migram: a periferia das grandes cidades.
Novos sentidos são disparados. Outras verdades são investigadas. Rappin Hood, como sugere sua persona, "rouba" dos ricos e entrega aos pobres. Ou melhor, desliza o lugar da canção "Disparada" para presentificá-la (dar de presente) aos manos. Ao mesmo tempo em que restitue a valorização de "Disparada" na história da canção brasileira. “Eu não quero que o irmão escute e se revolte, que queira quebrar tudo. Quero que ele aprenda a contestar, perguntar, tudo de forma organizada”, afirma.
Ora se dirigindo a um mano, ora falando com um dessemelhante, o sujeito da canção desenha o percurso do seu cotidiano: produz novo significado à exclusão social. A voz de Jair Rodrigues (o homem que cantou "deixe que digam, que pensem, que falem" marcando a clara entoação da fala no canto), entrecortada pela voz de Rappin Hood (que ora ratifica, ora faz pequenas alterações no que é dito por Jair), fortalece a mensagem cantada, pelo sabor da importância de Jair na nossa canção.
As sonoridades nordestinas e o sampler misturam passado e presente a fim de abrir um futuro possível: a hibridação (em um país misturado, miscigenado) que une canção e rap, negros e brancos. Happin Hood encontra uma terceira margem. Distante da segregação racial (e consequentemente total).
Se "é para entrar na história", "Disparada rap", tensionando a mistura que constitui o Brasil, já entrou. O rap já se inscreveu na história da música popular brasileira: Rappin Hood prova isso: “Em cima da cadência do samba, eu vou rimando. Não quero ser cópia de um rapper americano”.

***

Disparada Rap
(Téo de Barros / Geraldo Vandré / Rappin Hood)

"É pra tocar no rádio,
é pra tocar em qualquer lugar,
que é pra entrar para história"

"eu acho que o rap tem que ir por esse caminho,
virar cada vez mais musica po-po-pular, po-po-pular,po-po-pular brasileira"

Prepare o seu coração (prepare o seu coração)
Prás coisas que eu vou contar (pra tudo que eu vou falar)
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar

São Paulo capital, terra da garoa,
Gente ruim, gente boa
Milhoes de pessoas andando pelas ruas
Lutando pra sobreviver, verdade nua e crua
Vida tá dura, irmao, na correria
Cê fica sem trabalho passa fome e a familia, entao
Quantos vieram de longe para aqui viver
Sonhando com melhor vida, esperando vencer
Tem que correr, tipo Dona Maria,
Levanta as quatro e meia pra atender a freguesia
Tem dia, que a dor nas costas nao aguenta
Com mais de 60 luta pra ganhar 50 irmao
Pra esse povo sofrido juntei meu rap cançao
Jesus há de voltar, prepare o seu coraçao

Prepare o seu coração (prepare o seu coração)
prás coisas que eu vou contar (pra tudo que eu vou falar)
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar

Distante, voa o pensamento do migrante
Fugindo da seca, vida de retirante
Constante de ser realidade do país
Ir pra cidade grande ter o que sempre quis
Feliz, é o que pensava que iria ser
Ter carros, mulheres, dinheiro, poder
E a desilusao levando irmao
Procurando emprego e andando em vao
Com a mala na mao, pensando em voltar
Pra terra natal sonha em retornar
Desde de criança ja queria ser alguem
Vir pra capital vencer na terra de ninguem
Pois bem, ser pobre no Brasil vida de cão
Mas por ordem e progresso, aí, prepare o seu coraçao

Prepare o seu coração (prepare o seu coração)
Prás coisas que eu vou contar (pra tudo que eu vou falar)
Eu venho lá do sertão (eu venho lá de longe ó),
eu venho lá do sertão (mó caminhada ó, muita saudade)
Eu venho lá do sertão (muita esperança)
e posso não lhe agradar (muitas lembranças)

(Rappin'Hood e Jair Rodrigues)

musica po-po-pular, po-po-pular,po-po-pular bra-bra-brasileira
musica po-po-pular bra-bra-brasileira

(Salve mestre)

Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe do que eu

RAPPIN'HOOD: Eh trem bom, queria agradecer meu cumpadre, meu mestre: salve Jair Rodrigues
JAIR RODRIGUES: Não tem que agradecer nada meu irmao, to aí precisou de mim é só chamar
RAPPIN'HOOD: Eu respeito axé
JAIR RODRIGUES: Falo

"Em 1966, Jair Rodrigues interpretou 'Dispara',
música de Geraldo Vandré e Téo de Barros,
no festival da Record e tirou o primeiro lugar,
empatando com 'A Banda', de Chico Buarque de Holanda,
interpretada pelo próprio Chico e por Nara Leão.
Esta é a história"

27 junho 2010

178. Paisagem na janela

Para N. Etrikin, "nossas relações com o lugar tornam-se elementos na construção de nossas identidades individuais e coletivas". Nossa experiência com os espaços diz muito daquilo que somos, já que os lugares oferecem suportes para os nossos sentimentos, atos e omissões se desenvolverem.
O efeito da música na paisagem cultural (e vice-versa) é tema ainda pouco estudado. Ora positiva, ora negativa, mas nunca neutra, a imagem da paisagem interfere sim na feitura da canção (letra, música e performance).
O poeta é geógrafo. Ele traduz (cria), por assim dizer, a paisagem. O sujeito de "Paisagem na janela" (Clube da esquina, 1972, de Lô Borges e Fernando Brant, explora o apoio e a segurança do espaço íntimo para ver (a cantar) a sua percepção do mundo. Do particular, ele canta o coletivo: cria um mundo ideal. As paisagens (pintadas/cantadas) pelo sujeito são ficções plasmadas do ambiente.
Como sabemos, o quarto de dormir, oferecendo certa estabilidade (pelo suposto domínio da intimidade), é ponto de visão privilegiado para observar o mundo: "Da janela o mundo até parece meu quintal", como canta Milton Nascimento.
A paisagem pode mentir, por isso "você não quis acreditar". Afinal, as paisagens são ficcionais, o mundo não é tão objetivamente dado como a paisagem tenta imprimir. Ou seja, toda paisagem é representação (e vice-versa): só há paisagem quando esta é percebida. E o que fazer com o visível? Eis um dos trabalhos do artista.
A paisagem mineira, sem dúvida, pode ser percebida na canção "Paisagem na janela": seja no famoso "jeitinho mineiro" de entoar, seja nas imagens cantadas. Márcio Borges, no livro Os sonhos não envelhecem - histórias do clube da esquina, que cartografa a atuação da trupe de Minas Gerais na paisagem do som brasileiro, aponta: "Fomos hospedados num hotel colonial (...) meu quarto ficava numa ala do velho casarão que dava para uma praça principal, enquanto o de Fernando tinha janelas que se abriam para uma igreja e o cemitério da cidade. Com toda certeza isso foi a inspiração".
O visível se completa no invisível: o sujeito da canção canta o mundo a fim de ampliar o poder de sua esfera protetora: o quarto de dormir (espaço privilegiado dos sonhos). Ele manda na paisagem que cria. Amparado na (e pela) janela lateral, o sujeito toca o mundo. Mundo que não é identificado pelo outro (que não acredita), já que as paisagens são lugares de identidade individual, muito embora as práticas de representação sejam um movimento da vontade na busca do outro.

***
Paisagem na janela
(Lô Borges / Fernando Brant)

Da janela lateral do quarto de dormir
Vejo uma igreja, um sinal de glória
Vejo um muro branco e um vôo pássaro
Vejo uma grade, um velho sinal

Mensageiro natural de coisas naturais
Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava deste temporal

Você não escutou
Você não quer acreditar
mas isto é tão normal
Você não quer acreditar
e eu apenas era

Cavaleiro marginal
lavado em ribeirão
Cavaleiro negro que viveu mistérios
Cavaleiro e senhor de casa e árvores
sem querer descanso nem dominical

Cavaleiro marginal banhado em ribeirão
conheci as torres e os cemitérios
conheci os homens e os seus velórios
quando olhava da janela lateral
do quarto de dormir

26 junho 2010

177. Apenas um rapaz latino-americano

A música e a poesia de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes tem raízes nas feiras do Ceará. Mais tarde, o repente encontrou o piano e o canto coral e fez das composições de Belchior peças únicas e bem cuidadas em que as fronteiras entre conhecimento erudito e cultura popular estão borradas.
"Apenas um rapaz latino-americano" (Alucinação, 1976) é metacanção: canção que não esconde que é canção: "Isso é somente uma canção", ou seja, não tem a falsa e ilusória pretensão de ser real. Ela caminha, e sabe disso, pelo plano da ficção.
Escrita em primeira pessoa, a letra coloca o sujeito diante de suas certezas (ser um rapaz latino-americano) e suas dúvidas (como fazer uma canção suave sendo deste lugar?). Na verdade, o sujeito tensiona e equilibra a (quase) irrespondível pergunta: o que é ser latino-americano?
Ele dá pista: recorre à história (não ter parentes importantes); à cultura (a referência à canção "Divino maravilhoso", do baiano Caetano Veloso); e ao universo ao redor (a audição da diversidade sonora latino-americana).
Metacanção (canção que “come” a si mesma), "Apenas um rapaz latino-americano" se desdobra para fora (cita versos de outra canção: "Divino maravilhoso", de Caetano Veloso) e para dentro ("Isso é somente uma canção", diz) de si.
Há outros filigranas que reiteram isso. Por exemplo, o fato do sujeito afirmar, dentro da canção, que não consegue fazer uma canção sem dizer aquilo que sente: a dor de ser "apenas" um latino-americano. Apesar de afirmar também, que a canção não é a realidade, que esta "ao vivo é muito pior". Ou seja, desconstrói a ideologia de que "tudo é divino, maravilhoso". Nada o é.
Entre ironia e imagens de horror, o sujeito ainda traz, por reminiscência outro verso (de fora): "eu queria dizer que tudo é permitido", de viés dialoga com "É proibido proibir" verso de um canção (de mesmo nome), também de Caetano.
"Apenas um rapaz latino-americano", deste modo, estabelece um diálogo contestador e, porque não, enriquecedor com a mensagem tropicalista. A canção de Belchior tenta ser a tradução daquilo que é ser latino-americano, algo distante da mistura colorida, a princípio, identificada na trupe da Tropicália.
E ainda, os versos "tudo é permitido / até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê" traz, também por reminiscência do ouvinte (aliás, a canção de Belchior é toda trabalhada para ter sua mensagem entendida claramente pelo ouvinte), a tona os versos de "Splish, splash", do jovemguardista Roberto Carlos. Outro desdobrar-se "para fora" da canção "Apenas um rapaz latino-americano".
Belchior empresta voz a um cantor ("eu sou apenas um cantor") que canta outra verdade: mais real, em seu entender. No entanto, ele sabe que a verdade (a vida realmente) é incapturável e canta exatamente, entre hesitações e auto-correções ("sei que tudo é proibido, aliás, eu queria dizer que tudo é permitido") a impossibilidade de cantar (traduzir em uma canção) a vida latino-americana.

***

Apenas um rapaz latino-americano
(Belchior)

Eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior

Mas trago na cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino, tudo é maravilhoso

Tenho ouvido muitos discos, conversando com pessoas
Caminhado o meu caminho, papo o som dentro da noite
E não tenho um amigo sequer que ainda acredite nisso não
Tudo muda, e com toda a razão

Eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior

Mas sei que tudo é proibido, aliás, eu queria dizer que tudo é permitido
Até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê

Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Som, palavras são navalhas e eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém

Mas não se preocupe, meu amigo com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente quer dizer, ao vivo é muito pior

Eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco
Por favor não saque a arma no saloon, eu sou apenas um cantor

Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar
Mate-me logo à tarde, às três que à noite eu tenho compromisso
E não posso faltar por causa de você

Eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior

Mas sei, sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é secreto
Nada, nada é misterioso não

25 junho 2010

176. Samba de um minuto

Devagar, devagarinho, a cantora Roberta Sá, nascida em Natal (RN), mas banhada nas fontes do samba carioca, vem imprimindo sofisticação e excelências às canções que entoa.
A escolha do repertório aponta uma intérprete exigente e atenta ao passado e às promessas de felicidade, para compor o lastro sonoro do presente. Belo e estranho dia pra se ter alegria (2007), segundo disco, é exemplo disso.
Em "Samba de um minuto", de Rodrigo Maranhão, podemos entrar em contato com a voz afinada, delicada e precisa de Roberta. A letra chama à cena o "estranho" do título, mas resulta na criação do "estado belo": a libertação da dor.
O sujeito (poeta/cancionista) se isola: pede o esquecimento do tempo lá de fora e até da rima cara para ter a atenção do destinatário voltada apenas para a mensagem: "com minha dor não se brinca", "a fonte (amorosa) secou" e "o novo sempre vem".
Volta o tema da saudade (subterrâneo, obscuro, escuro, claro), mas com uma certa fresta de sol. O tempo não pára e o sujeito busca novas miradas - aliviadoras da dor, causadas, ao que tudo indica, pelo comportamento do outro: sem verdades para dizer, nem maldade para fazer.
Devagar, na contra mão da roda da vida, o sujeito vira o jogo, pede calma, pára o andamento da relação, por um minuto, e diz suas verdades. Chama a atenção do outro para o que está incomodando: causando dor - motivo do canto (o samba de um minuto): "e se a dor é de saudade, e a saudade é de matar, em meu peito a novidade vai enfim me libertar".

***

Samba de um minuto
(Rodrigo Maranhão)

Devagar
Esquece o tempo lá de fora
Devagar
Esqueça a rima que for cara

Escute o que vou lhe dizer
Um minuto de sua atenção
Com minha dor não se brinca
Já disse que não
Com minha dor não se brinca
Já disse que não

Devagar, devagar com o andor
Teu santo é de barro e a fonte secou
Já não tens tanta verdade pra dizer
Nem tão pouco mais maldade pra fazer

E se a dor é de saudade
E a saudade é de matar
Em meu peito a novidade
Vai enfim me libertar

24 junho 2010

175. Ai que saudade de ocê

Quem não já tenteou sofrido o ar que é saudade? Feliz expressão de Riobaldo (de Grande sertão: Veredas), a pergunta aponta que "ter saudade" é sinônimo de "ter vivido". Afinal, "toda saudade é uma espécie de velhice".
"Saudade até que é bom, é melhor que caminhar vazio" ("Sonhos", Peninha). De fato, sendo a saudade a presença (transcendental) de algo, ou alguém, ausente (materialmente), ela aperta os parafusos de um instante passado, vivido (corporalmente) e, na maioria das vezes, bom.
Deste modo, a saudade tem relação íntima com a memória, com as lembranças (boas ou ruins) daquilo que nos constitui enquanto sujeitos. Muito embora saibamos que, sendo um reservatório da identidade, a memória não é segura: está sempre nos "traindo".
É claro que há, como Riobaldo nos lembra, as saudades das ideias. Saudades fluidas, sem possibilidade de verbalização (se é que a saudade pode ser dita), intrínsecas e constitutivas de nosso ser e estar no mundo.
"Ai que saudade de ocê", de Vital Farias, tematiza a saudade do outro, de alguém distante. Alguém que não deve se admirar ao ser beijado pelo beija-flor, pois isso seria muito natural já que este outro é a flor objeto de desejo do sujeito que canta: cuja sina é trabalhar: "todo artista tem que ir aonde o povo está", apesar de ter o coração (a saudade) fincado em algum lugar: "eu gosto mesmo é de ocê".
Canção de exílio às avessas, o sujeito da canção de Vital Farias não é aquele que quer "voltar para o seu lugar e ouvir o canto do sabiá". Enquanto ouvintes, não sabemos quem é ele, nem quem é o destinatário da mensagem, muito menos suas localizações espaciais, já que o sujeito se remete à estrada: não há um porto. Sabemos sim que, como o beija-flor não canta, ele tem sua atuação na cena amorosa adensada e multiplicada pelo canto do sujeito da canção.
Elba Ramalho (Coração brasileiro, 1983), como uma vênus nossa, singulariza a mensagem, o canto, a flor, consolando com sua voz o outro distante, mas, principalmente, acarinhando o sujeito que canta, matando o desejo da presença de corpo. Além de pedir um retorno: carta, palavras ao vento que registram a permanência do sentimento, apesar da distância.
Elba, pássara nordestina de coração brasileiro, tem o dom de esquentar as noites frias de junho, inverno dos corações distantes de suas terras: seja pela imposição das condições financeiras (o trabalho), como parece ser o caso do sujeito da canção, seja pelas trapaças da sorte que a vida nos impõe.

***

Ai que saudade de ocê
(Vital Farias)

Não se admire se um dia
Um beija-flor invadir
A porta da tua casa
Te der um beijo e partir
Fui eu que mandei o beijo
Que é pra matar meu desejo
Faz tempos que não te vejo
Ai que saudade de ocê

Se um dia ocê se lembrar
Escreva uma carta pra mim
Bote logo no correio
Com frases dizendo assim:
“Faz tempo que eu não te vejo
Quero matar meu desejo
Te mando um monte de beijo
Ai que saudade sem fim”

E se quiser recordar
Aquele nosso namoro

Quando eu ia viajar
Você caia no choro

Eu chorando pela estrada
Mas, o que eu posso fazer?
Trabalhar é minha sina
Eu gosto mesmo é de ocê

23 junho 2010

174. Felicidade

O verão de 1974 rendeu um antológico disco, gravado ao vivo no Teatro Vila Velha (Bahia): Temporada de verão. Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso se reuniram e, com repertório iluminado, cantaram a multiplicidade (sintomática) sonora do Brasil.
Entre arranjos que ainda conservam e pulsão tropicalista (que, de fato, tornou-se um gesto revelador do país para sempre) surge "Felicidade", de Lupicínio Rodrigues. Aliás, seria interessante investigar porque as interpretações de "Felicidade" sempre suprimem duas estrofes da letra. Penso que o motivo seja o regionalismo (e referências biográficas, por que não?) compreendido naqueles versos.
A interpretação de Caetano Veloso investe na ausência da felicidade (que foi se embora). Ou seja, com entoação lenta (passional) e acompanhado (ao fundo) pela melodia de "Luar do sertão", de Catulo da Paixão Cearense (que supre a ausência das duas estrofes da letra), Caetano figurativiza a imagem do sujeito triste, distante da felicidade - só alcançada através do canto.
Um tanto diferente, mesmo em tom menor, a versão de Antonio Villeroy (José, 2010) tenta investir naquilo que está atrás do muro - a casa, esquecendo de que quem fala (canta) é o sujeito que está aqui (próximo do ouvinte) lamentando a não-felicidade. O sujeito gosta "lá de fora", mas está aqui dentro: afastado da felicidade, portanto.
Compositor de significativos sucessos na voz de Ana Carolina, José Antonio Franco Villeroy, cancionista atento, basta ouvir o disco José por completo, ilumina a felicidade (sempre sinônima da não-falsidade: da verdade) presentificada pelo canto do sujeito.
A canção (o canto) começa arrastada (a linha da melodia está muita próxima da voz), adensando o que é dito (a saudade que mora no peito) e vai acelerando (crescendo) para despertar a alegria através canto. O sujeito sozinho (e triste) se aquece ao cantar: vai em um segundo para sua casa.
A referência a Caetano Veloso, feita aqui no início, não é mero comparativismo tolo, já que o José (título do disco e, por que não, sujeito de "Felicidade") de Villeroy guarda profunda semelhança com o José da canção homônima de Caetano: "Estou no fundo do poço, meu grito lixa o céu seco". Embora o sujeito de Villeroy consiga vislumbrar raios de luz (no canto que, progressivamente, se alegra), enquanto o sujeito de Veloso espera "só consigo e mal consigo, no umbigo do deserto".

***

Felicidade
(Lupicínio Rodrigues)

Felicidade foi se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora

Lá na cidade tem muita mulher bonita
Que usa vestido sem cinta e tem na boca um coração
la na cidade se ve tanta falsidade
Que a mulher faz sacanagem até mesmo na pensão.

Felicidade foi se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora

A minha casa fica lá detrás do mundo
Onde eu vou em um segundo quando começo a pensar
O pensamento parece uma coisa à toa
Mas como é que a gente voa quando começo a pensar

Felicidade foi se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora

Lá onde eu moro tem um cavalo tordilho
Que é irmão do que é filho daquele que o juca tem
Quando eu pego seus arreios e lhe encilho
Sou pior que limpa-trilho corro na frente do trem.

Felicidade foi se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora

22 junho 2010

173. Por isso eu corro demais

Para Eliana Bezerra

Marítmo (1998) - primeiro disco da "trilogia" que tem o mar como tema - é fabuloso: o canto sofisticado de Adriana Calcanhotto, canções que entraram para o imaginário coletivo e arranjos que figurativizam aquilo que é dito (cantado) na mais perfeita tradução.
Ao ritmo do mar (o marítmo do título), com suas voltas e reviravoltas (a vertigem do chão que gira), Calcanhotto une Dorival Caymmi (o tradutor das canções praieiras), Waly Salomão (o poeta arrebatado) e Roberto Carlos (o rei romântico), entre outros, para, pela orla, pela beira, pela areia afora, encher seu canto de som, silêncio e fúria.
A versão de "Por isso eu corro demais", de Roberto Carlos, por exemplo, indicia o trabalho (rigor) estético de Adriana. A canção começa com barulhos do que se imagina ser de trânsito (engarrafamento?), localizando espacialmente o sujeito que canta (a voz da canção) e afirma correr demais para estar ao lado de seu bem: de fato, ele corre para enfeitar sua própria noite na epifania do encontro.
É o correr, a expectativa, o desejo de estar junto, que move o sujeito e o leva a cantar. Afinal, como ele diz: "se você vivesse sempre ao meu lado eu não teria motivo pra correr e devagar eu andaria". Feliz de nós, ouvintes, que podemos nos encantar pelo canto (da falta) do sujeito.
Adriana, ao contrário da versão de Roberto (que desenha um sujeito que, de fato, corre, haja vista o ritmo da canção) investe em um "Q" de sensação de cansaço do sujeito: a melodia é toda lente, assim como a entoação da intérprete que, por vezes, quase fala. Eis a beleza da criação de Calcanhotto: ela dá voz ao estado (de falta; de separação; de distância) interior do sujeito e não ao movimento (desespero) de busca que a letra expressa. Cada canto ilumina determinado aspecto da canção de Roberto Carlos.
O sujeito desenhado por Adriana mira na circularidade ("Eu canto, grito, corro, rio. E nunca chego a ti") da ausência do outro: a sensação de apatia (o constante não estar ao lado: a saudade) leva o sujeito (de Adriana) à quase afazia, enquanto os versos terminados em "ar" (devagar, passar, levar chegar) ampliam o desejo, mas também indiciam a sua não concretude (lança a mensagem para o campo apenas da vontade, para o ar sem chão), pois o sujeito conclui a canção ainda correndo demais. Ele se estranha e canta.
Calcanhotto imprime o perfume da canção pela casa inteira (a pele do sujeito), a fim de apontar a falta que lhe move. Sua voz percorre nossos ouvidos, faz nosso coração disparar, na ânsia de ter este sujeito (que corre demais) ao nosso lado: "para o êxtase asa-delta": e é só deixar a cor tomar conta do ar.

***
Por isso eu corro demais
(Roberto Carlos)

Meu bem qualquer instante
que eu fico sem te ver
aumenta a saudade
que eu sinto de você
então eu corro demais
sofro demais
corro demais só pra te ver meu bem

e você ainda me pede
para não correr assim
meu bem eu não suporto mais
você longe de mim
por isso eu corro demais
sofro demais
corro demais
so pra te ver meu bem

se você está ao meu lado eu só ando devagar
esqueço até de tudo, não vejo o tempo passar
mas se chega a hora de pra casa te levar
corro pra depressa outro dia ver chegar
então eu corro demais
sofro demais
corro demais
só pra te ver meu bem

se você vivesse sempre ao meu lado
eu não teria
motivo pra correr
e devagar eu andaria
eu não corria demais
agora corro demais
corro demais
só pra te ver meu bem

21 junho 2010

172. Só danço samba

Para Neilson Medeiros

Emílio Santiago tem uma das mais belas vozes do Brasil: quente, limpa (emissão impecável) e cheia de recursos (timbres, extensões e técnica) que o intérprete sabe usar com o rigor de mestre. A escola da participação nos concursos de calouros, a atuação como crooner da orquestra de Eduardo Lincoln e o canto na noite deram a Emílio o conhecimento certo: de domínio de palco e voz.
Emílio já cantou vários de nossos grandes compositores, colorindo a história de nossa canção com suas aquarelas sonoras. Em Só danço samba (2010) ele se movimenta em direção ao sambalanço, que tanto acrescenta ao suingue de sua voz e, vice-e-versa, ganha outros brilhos na interpretação de Emílio. Temas e gingados que marcaram a formação musical do cantor, ainda cronner.
Portanto, Só danço samba é, de certo modo, um "olhar para trás". Pois Emílio, ao homenagear o organista Ed Lincoln, parece apontar para o que, de fato, lhe engendrou: o samba, via estilo Ed Lincoln.
"Só danço samba" (ode a um de nossos grandes ritmos - para alguns é o maior), faixa-título de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, ganha arranjo mais feito para a dança de pares, agora embalados pelo órgão de Julinho Teixeira.
Além de "Só danço samba", outras canções - como a bela "Samba de verão", de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle - ganham novas cores, imagens e sons através da voz de Emílio Santiago. Uma festa para os ouvidos e um privilégio para a nossa existência (brasileira). Há uma melancolia (toda nossa) que atravessa o disco e incita e excita o canto de Emílio Santiago.
Esta homenagem feita de Emílio para Lincoln, além de demonstrar a sensibilidade dos artistas, imprime a gratidão à nossa história. A arte (musical inclusive) requer aprimoramentos, estágios, parcerias e mergulhos, Emílio Santiago sabe disso, valoriza (resgata) sua história (que se confunde com a nossa: seus ouvintes) e canta, para nos encantar.

***

Só danço samba
(Tom Jobim / Vinicius de Moraes)

Só danço samba,
Só danço samba,
Vai, vai, vai, vai, vai
Só danço samba,
Só danço samba,
Vai
Só danço samba,
Só danço samba,
Vai, vai, vai, vai, vai
Só danço samba,
Só danço samba,
Vai

Já dancei o twist até demais,
Mas não sei, me cansei,
Do calipso, ao chá chá chá

Só danço samba,
Só danço samba,
Vai, vai, vai, vai, vai
Só danço samba,
Só danço samba,
Vai
Só danço samba,
Só danço samba,
Vai, vai, vai, vai, vai
Só danço samba,
Só danço samba,
Vai

20 junho 2010

171. Meia lua inteira

Para Edilene Fonseca

Em 1989 Caetano Veloso lança o disco Estrangeiro, que traz entre suas dez faixas a canção “Meia lua inteira”, de Carlinhos Brown. No livro Verdade tropical (1997), Caetano afirma que Brown “reúne em si os elementos de reafricanização e neopopização da cidade”, o que, sem dúvidas, coloca o criador da Timbalada na linha evolutiva da canção pós-Tropicália.
Caetano e Brown se aproximam pelo uso do jogo como recurso artístico; e por retomarem, direta ou indiretamente procedimentos utilizados pelo poeta, também baiano, Gregório de Matos. Basta lembrar a gravação de “Triste Bahia”, feita por Caetano para o disco Transa (1972), com a atualização do poema “À cidade da Bahia”, de Gregório: "Triste Bahia".
“Meia lua inteira” é um exemplo da aproximação entre Brown e Gregório (via o canto de Caetano) pois ela dialoga com a estrutura formal do soneto gregoriano “O todo sem a parte não é todo”. Através do jogo lúdico, o poema persuade o leitor a aceitar que mesmo tendo sido achado “apenas” uma parte do menino deus (um braço), esta parte deve ser adorada com a mesma fé tal e qual ali estivesse "Deus todo".
O jogo de palavras obscurece a razão, adensa a linguagem e a intenção persuasória, argumentativa e lúdica. Assim, quebra-se a linearidade da língua e o estranhamento é gerado.
A consciência da linguagem trabalhada por Gregório de Matos está presente em “Meia lua inteira” (nome de um golpe de capoeira), de Carlinhos Brown, em que o ouvinte é tentando a concluir que a meia lua é a lua inteira.
A letra apresenta uma multiplicação de imagens do todo pela parte: o “cocar de coqueiro baixo”: remete à capoeira; “bimba e birimba”: reduções afetivas da palavra berimbau; e a expressão “taco de arame, cabaça, barriga”: partes do berimbau. Já “martelo do tribunal”: denota tanto “martelo”, um golpe de capoeira; quanto “do tribunal”: remete à ordem oficial que proibiu o jogo de capoeira por bastante tempo no Brasil.
Mas, quem é o “grande homem de movimento, pego sem documento, caminhando contra o vento”? Parece que esta proliferação de significantes que aponta, a princípio, para o próprio jogador de capoeira em seus movimentos de corpo e fugas da polícia, faz referência à letra de “Alegria, alegria”, de Caetano: “caminhando contra o vento / sem lenço, sem documento”. E também referencia a letra de “Tropicália”: “Eu organizo o movimento”.
Seja como for, "Meia lua inteira" é uma alegria sonora e rítmica em que o corpo é convidado à festa da afirmação da vida (inteira): Viva a Bahia ia ia ia ia!

***

Meia lua inteira
(Carlinhos Brown)

Meia lua inteira sopapo
Na cara do fraco
Estrangeiro gozador
Cocar de coqueiro baixo
Quando engano se enganou

São dim, dão, dão
São Bento
Grande homem de movimento
Martelo do tribunal
Sumiu na mata adentro
Foi pego sem documento
No terreiro regional

Uera rá rá rá
Uera rá rá rá
Terça-feira
Capoeira rá rá rá
Tô no pé de onde der
Rá rá rá rá
Verdadeiro rá rá rá
Derradeiro rá rá rá
Não me impede de cantar
Rá rá rá rá
Tô no pé de onde der
Rá rá rá rá

Bimba birimba a mim que diga
Taco de arame, cabaça, barriga
São dim, dão, dão
São bento
Grande homem de movimento
Nunca foi um marginal
Sumiu na praça a tempo
Caminhando contra o vento
Sobre a prata capital

19 junho 2010

170. O barquinho

Já está mais do que claro que a bossa nova não surgiu da noite para o dia ("a evolução não dá saltos", diria um amigo). Obviamente, o uso do termo "evolução" aqui não se refere a certo sentimento de melhoramento do que surge, em detrimento ao que passou, mas, e isso é mais importante, do "tempo que corre": do barquinho que desliza e vai. Falo da "retomada da linha evolutiva" da MPB referendada por Caetano Veloso em 1966.Ou seja, o (re)arranjo criativo do lastro de nossa cultura sonora, musical e cancional.
Dito isto, Barquinho (1960) é a mais completa tradução deste pensamento. Ele apresenta a dona da voz do samba canção de fossa (das madrugadas insones, maquiagens pesadas e das separações trágicas) sob um céu azul, mesmo vestida de preto, e entoando as letras solares (a calma de verão) da bossa nova.
Importa lembrar que dois anos antes foi lançado o antológico Chega de saudade, de João Gilberto. Portanto, o disco de Maysa, podemos dizer, aparece em um período maneirista (de transição/afirmação) da nova sonoridade.
É deste modo que Barquinho agrega os novos valores - dias tão azuis - à voz impagável de Maysa: de tão quente e rouca (noturna). A persona flâneur que percorre os bares de noite, caminha agora até o mar, de dia. O vigor emocional da intérprete de "Meu mundo caiu" se une às letras de luz e festa da nova onda. Onda que precisou da assinatura de cantores da "velha onda" para se firmar e penetrar no grande público: basta pensar, além de Maysa, na divina Elisete Cardoso e seu Canção do amor demais (1958).
"O barquinho", de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, clássico absoluto da bossa nova, possibilita a Maysa o balanço exato de sua poderosa voz: ecos do amor mais triste (não se nega a natureza, diria outro amigo) dançando ao ritmo do mar (tudo verão).
Quem disse que a tristeza não ri? Ainda mais através de uma canção (sem intenção?) ao ritmo do balanço do mar, em que o deslizar do barquinho inspira (e imprime no pulso da melodia) a vontade de cantar.

***

O Barquinho
(Ronaldo Bôscoli / Roberto Menescal)

Dia de luz, festa de sol
Um barquinho a deslizar no macio azul do mar
Tudo é verão, amor se faz
Num barquinho pelo mar que desliza sem parar
Sem intenção, nossa canção
Vai saindo deste mar e o sol

Vejo o barco e luz, dias tão azuis

Volta do mar, desmaia o sol
E o barquinho a deslizar e a vontade de cantar
Céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho ao coração deslizando na canção
Tudo isso é paz, tudo isso traz
Uma calma de verão e então

O barquinho vai, a tardinha cai

Volta do mar, desmaia o sol
E o barquinho a deslizar e a vontade de cantar
Céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho ao coração deslizando na canção
Tudo isso é paz, tudo isso traz
Uma calma de verão e então

O barquinho vai, a tardinha cai

18 junho 2010

169. Jack Soul Brasileiro

Para Marcus Aurelius

Em "Jack soul brasileiro" (Na pressão, 1999) Lenine presta uma bela homenagem àquele que fez o coco sambar: Jackson do Pandeiro, o pequeno/grande (mugango dengo) coquista que soube manter a tradição e lançar mundos no mundo rítmico do Brasil.
O título já demonstra o carinho e o trabalho poético: "soul" (alma) entre "Jack" (que vem dos filmes de faroeste norte-americano que o ritmista curtia) e "Brasileiro" (que rima com pandeiro e aponta um signo intrínseco à obra do homenageado: personificação cultural).
A delicadeza de encontrar um diminutivo para Jackson (Jack) e completar o significante com "soul" funciona como gesto condensador daquilo que ouvimos na canção: a alma de Jackson (sua obra) disseminada, pulverizada, filigranada a fim de instaurar a importância do ritmista na cultura brasileira: o charme dessa nação.
"Soul" está no meio sugerindo que Jackson do Pandeiro punha a alma no centro da obra, enchendo-a de vitalidade e vigor: tudo em cada coisa. O sujeito da canção ora faz as vezes de ghostwriter (assume a voz) de Jackson (brincando com a sonoridade das palavras: "Jack soul" - "Já que subi"), ora canta (exalta) o rei da levada.
O valor sonoro das palavras as vezes suplanta qualquer sentido lógico, como na embolada. O jogo com a sonoridade das palavras (na língua da percussão) é gesto característico na obra de Lenine, coisa de quem ama a palavra cantada (seus sons e ritmos).
Aliás, o ritmo aqui é uma levada suave (mistura: pique do funk rock do toque da platinela, quase embolada dengosa). Ao mesmo tempo em que a destreza com as palavras imprime beleza e leva o ouvinte ao universo do homenageado: Jackson do Pandeiro.
Versos, temas, rimas, modelo de distribuição de notas e átomos sonoros de Jackson são recuperados e postos em circulação (confrontados) para tencionar a essencialidade da obra do pandeirista na canção nossa de cada dia.
Reiterações fônicas, listas (no caso, de características de Jackson: do valor do poeta) e jogo de pergunta-e-resposta brincam com a atenção do ouvinte, que fica ligado ao som. Mas não deixam de dizer, diz: "Jackson é brasileiro".

***

Jack Soul Brasileiro
(Lenine)

Jack Soul Brasileiro
E que som do pandeiro
É certeiro e tem direção
Já que subi nesse ringue
E o país do swing
É o país da contradição

Eu canto pro rei da levada
Na lei da embolada
Na língua da percussão
A dança mugango dengo
A ginga do mamolengo
Charme dessa nação

Quem foi?
Que fez o samba embolar?
Quem foi?
Que fez o coco sambar?
Quem foi?
Que fez a ema gemer na boa?
Quem foi?
Que fez do coco um cocar?
Quem foi?
Que deixou um oco no lugar?
Quem foi?
Que fez do sapo
Cantor de lagoa?

E diz aí Tião!
Tião! Oi!
Foste? Fui!
Compraste? Comprei!
Pagaste? Paguei!
Me diz quanto foi?
Foi 500 reais
Me diz quanto foi?
Foi 500 reais

Jack Soul Brasileiro
Do tempero, do batuque
Do truque, do picadeiro
E do pandeiro, e do repique
Do pique do funk rock
Do toque da platinela
Do samba na passarela
Dessa alma brasileira
Eu despencando da ladeira
Na zueira da banguela
Nessa alma brasileira
Eu despecando da ladeira
Na zueira da banguela

Eu só ponho BEBOP no meu samba
Quando o tio Sam
Pegar no tamborim
Quando ele pegar
No pandeiro e no zabumba
Quando ele entender
Que o samba não é rumba
Aí eu vou misturar
Miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba, e o meu samba
Vai ficar assim

Ah! ema gemeu

17 junho 2010

168. Muito pouco

Para Amador Ribeiro Neto

O sujeito das canções de Paulinho Moska estão sempre passeando por paisagens interiores: dentro de si. Há sempre algo que vaza, mina e escorre sem que o sujeito consiga segurar (e nem ao menos saber o que é), daí a melancolia e a tentativa, muitas vezes frustradas, de arranhar o real (Só os reis conhecem o que é o real? Qual o sentido da realidade?). Nessa tentativa, o corpo aparece como templo de inferno e céu.
Moska é um compositor inspirado - no sentido que o termo tem de busca permanente pela palavra certa e que possa traduzir o sentimento exato. As canções de Moska, muitas delas metacanções (ou seja, canções que falam de si: de canções), permitem que o ouvinte percebam o quanto é difícil trabalhar com o simples, com sensações e sabores cotidianos.
"Muito pouco" (Muito pouco, 2010) apresenta, na linha do sujeito inadaptado sugerido acima, o instante em que a dúvida cobre a vida: nada satisfaz, ou parece ter sentido. O muito (a pletora de possibilidades da vida contemporânea, em que as opções de escolha são enormes) é pouco (parecem vazios de significados) e o pouco, por sua vez, é pouco demais.
O sujeito quer (deseja, até impulssionado pelos apelos do universo ao redor) o muito, mas o muito se apresenta vazio (pouco) e o pouco, enfim, é pouco demais. Como resolver a questão? Como achar seu lugar no mundo? A loucura, tematizada na melodia pelas cores fortes dos arranjos do Bajofondo Tango Club, tomam conta do sujeito.
Os marcadores - Pronto; Chega; Veja -, que iniciam as estrofes, tem função importante para mostrar o debater do sujeito diante das coisas que, normais ou anormais, acontecem e exigem dele alguma posição. Pois o tempo não pára e as horas nunca andam para trás. Ele busca um meio termo (uma terceira margem) entre o pouco que já não satisfaz e o muito sem vigor (raso).
"Não é a quantidade que faz a estrutura de um grande amor": não exagerar a dose pode possibilitar viver um grande amor, afinal. O difícil é se equilibrar (saber do que é capaz) e aprender um pouco do muito que a vida traz.

***

Muito Pouco (Moska)

Pronto
Agora que voltou tudo ao normal
Talvez você consiga ser menos rei
E um pouco mais real
Esqueça
As horas nunca andam para trás
Todo dia é dia de aprender um pouco
Do muito que a vida traz

Mas muito pra mim é tão pouco
E pouco é um pouco demais
Viver tá me deixando louco
Não sei mais do que sou capaz
Gritando pra não ficar rouco
Em guerra lutando por paz
Muito pra mim é tão pouco
E pouco eu não quero mais

Chega
Não me condene pelo seu penar
Pesos e medidas não servem
Pra ninguém poder nos comparar
Porque
Eu não pertenço ao mesmo lugar
Em que você se afunda tão raso
Não dá nem pra tentar te salvar

Porque muito pra mim é tão pouco
E pouco é um pouco demais
Viver tá me deixando louco
Não sei mais do que sou capaz
Gritando pra não ficar rouco
Em guerra lutando por paz
Muito pra mim é tão pouco
E pouco eu não quero

Veja
A qualidade está inferior
E não é a quantidade que faz
A estrutura de um grande amor
Simplesmente seja
O que você julgar ser o melhor
Mas lembre-se que tudo que começa com muito
Pode acabar muito pior

Mas muito pra mim é tão pouco
E pouco é um pouco demais
Viver tá me deixando louco
Não sei mais do que sou capaz
Gritando pra não ficar rouco
Em guerra lutando por paz
Muito pra mim é tão pouco
E pouco eu não quero mais
Não quero mais
Não quero mais

16 junho 2010

167. É preciso saber viver

Para Cosme Sousa

No filme Insolação, a personagem de Paulo José afirma que "o amor não foi feito para sermos felizes e sim para nos sentirmos vivos". Esta frase é tão impactante e tão nietszcheana que é impossível não ficar com ela ressoando (dando voltas) em nosso cérebro. Ela resume e amplia (desdobra) o sujeito: é um elo entre o encontro e a despedida, um amálgama entre o amor romântico e o amor livre.
Ela nos ensina como saber viver. Afinal, apenas viver não basta: "É preciso saber viver" como canta, reiteradas vezes, o sujeito da canção de Roberto e Erasmo Carlos. A sabedoria é o diferencial no deserto de almas que, vez por outra, a vida parece ser. ainda mais quando estamos em estado de amor, com todas as dúvidas, angústias e alegrias que este estado impõe.
Saber viver, portanto, passa pela consciência de que a alegria (e o amor) não excluem a tristeza (e a dor). Pelo contrário, saber viver é (também) enfrentar a solidão da existência: daquilo que nos afeta e nos empurra (ou não) para sempre.
A versão dos Titãs (Volume dois, 1998) investe em uma melodia que tenciona alongamentos e reduções sonoros: equilibrando alegria e tristeza, amor e dor, na medida exata que a letra pede. obviamente, nem sempre é possível escolher entre o bem e o mal. Vendedores e compradores de sonhos, tateamos (sempre rindo e sempre chorando) a vida indecifrável e sedutoramente irresistível.
O real, sendo sempre ficcional, terá a imagem das escolhas e das manipulações da ilusão engendrada por nós. Ou seja, sofrer (se arranhar na flor) e se alegrar (sentir o perfume da flor) são as únicas certezas da vida. Cabe a nós equilibrar tais forças e fazer da alegria a força maior. Se só o amor é real, de fato, ele nos mostra a vida (que estamos vivos) justamente pelas porções de felicidade e de tristeza que nos proporciona.

***

É preciso saber viver
(Roberto Carlos / Erasmo Carlos)

Quem espera que a vida
Seja feita de ilusão
Pode até ficar maluco
Ou morrer na solidão
É preciso ter cuidado
Pra mais tarde não sofrer
É preciso saber viver

Toda pedra no caminho
Você pode retirar
Uma flor que tem espinho
Você pode se arranhar
Se o bem e o mal existem
Você pode escolher
É preciso saber viver

15 junho 2010

166. Magrelinha

Para João Netto

"Magrelinha" (Pérola negra, 1973)é uma das mais líricas e belas canções de Luiz Melodia. A canção desenha um sujeito que, em mergulho para dentro (super-eu), canta o outro: que terá o sorriso renovado pelo pôr-do-sol.
A imagem de um arco-íris cor de sangue (prismado pela tonalidade da cor pôr-do-sol) que toca a areia preta adensa o encontro sublime de um eu com seu duplo; com um outro que pode, (ou não) ser ele mesmo.
Brilhos, sorrisos e beijos se contrapõem ao momento melancólico de fim do dia, possibilitando pensar que a paisagem cantada é toda interior: super-eu. Porém, ao mesmo tempo que o pôr-do-sol simboliza o fim de um ciclo, ele despoleta a abertura do novo que virá: o super-homem nietzscheano? Pode e não pode ser.
A melodia toda terna favorece a pulsão de vida, a afirmação da existência, apesar do sangue que colore o momento e da super-mosca que pousou no melado do beijo.
Entre hesitações e dúvidas (não adivinhadas nem mesmo pelo sol dos cinco sentidos), baby (I love you) é magrelinha e é mimada pelo sujeito superbacana, que vai sonhando até explodir colorido.

***

Magrelinha (Luiz Melodia)

O pôr-do-sol
Vai renovar,
Brilhar de novo o seu sorriso
E libertar
Da areia preta e do arco-íris
Cor de sangue, cor de sangue
O beijo meu
Vem com melado,
Decorado cor-de-rosa
O sonho seu
Vem dos lugares mais distantes
Terra dos gigantes
Super-Homem, Super-Mosca,
Super-Carioca, Super-Eu, Super-Eu
Deixa tudo em forma, é melhor nem sei
Não tem mais perigo
Digo, já nem sei
Ela está comigo, o som, o sol, não sei
O sol não adivinha,
Baby é magrelinha
No coração do Brasil

14 junho 2010

165. À procura da batida perfeita

Enquanto alguns estão mais preocupados com os louros (tudo por dinheiro) da fama vã (aparecer, por aparecer, na TV), o sujeito de "À procura da batida perfeita" está mais atento em evidenciar a sua batida. A diferença é clara a gente fuma e eles fama.
Meio à beira do caminho, ele (eu busco na raiz e lá tá o que eu sempre quis) se embrenha nas engrenagens da palavra cantada para transformá-la, renová-la e apontar outros (novos) caminhos. Qualquer semelhança com o gesto cancional de Marcelo D2 não é mera coincidência.
D2, misturando o rap com o samba, dois segmentos originados na margem, tropicalizou a influência norte-americana (o rap) e americanizou nosso samba. Bela antropofagia pós-tropicalista. D2 sacou que o rap aqui (no Brasil) não podia ter a mesma intenção segregacionista que tem nos bairros norte-americanos de onde vem.
Ou seja, a ideologia dos manos que tentam implantar aqui o jeito norte-americanês de sobreviver: a segregação racial, cantada pelo rap e hip hop, por exemplo, que se desvia da linha de certa cordialidade brasileira, não cabe no Brasil. Afinal, Aqui ninguém é branco, como postula Liv Sovik; ou, ainda, Antonio Risério, no belo livro A utopia brasileira e os movimentos negros.
O sujeito de "À procura da batida perfeita" (de D2 e Davi Corcos, em À procura da batida perfeita, 2003) mistura para denunciar. Ou seja, o sujeito não deixa de dar seu testemunho (dizer o que pensa dessa vida), mas, ao mesmo tempo, canta e é feliz. Não se deixa amargurar: solto na babilônia, procura a paz e não separação: "Eu tô junto e junto carrego meu orgulho".
O "canto falado", típico do rap e hip hop, convive com o "canto cantado": não tenho pressa a velocidade é essa: mc é partideiro, bumbo é scracth. É essa devoração que aponta "aonde cresci aonde ando aonde fico aonde vou": o Brasil, onde o bicho pega e a chapa é quente; atitude, amor e respeito também.

***

À procura da batida perfeita
(D2 / Davi Corcos)

eu vou no samba à procura da batida perfeita então corre
a batida é minha cheguei primeiro
no ruim faz a fezinha que é tudo por dinheiro
solto na babilônia e lá procuro a paz
perderam o manual e agora como faz?
joão e maria cheio de regalia
entrou no conto do canalha que fazia e acontecia
agora é artista não se mistura com a plebe
domingo no faustão terça-feira na hebe
iate em botafogo apartamento em ipanema
uma vida de bacana se eu entrasse no esquema
mas eu busco na raiz e lá tá o que eu sempre quis
não é um saco de dinheiro que me deixa feliz
e sim a força do samba a força do rap
o mc que é partideiro o bumbo que vira scracth
e é meu som que mostra muito bem o que eu sou
aonde cresci aonde ando aonde fico aonde vou
eu vou no samba à procura da batida perfeita
o bicho da pegando a chapa esquenta
o tempo passa mas a evolução é lenta
mas não tenho pressa a velocidade é essa
não há nada nesse mundo cumpadi que me estressa
porém há porém
há um caso diferente que envolve toda minha gente
não ser bucha de ninguém ficar do lado do bem
atitude amor e respeito também
eu vou no samba é gente bamba
a diferença é clara a gente fuma e eles fama
proteger a raiz pra que tenha bons frutos já diz o velho ditado quem tá junto tá junto
e eu tô junto e junto carrego meu orgulho
surbubano convicto e sei meu lugar no mundo
há coisas que dinheiro não paga cê sabe como é
tipo eu me minha preta só no rolé

13 junho 2010

164. Travessia

"Travessia" é a última palavra do livro Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Mas, muito além de ser o fim, "travessia" é o meio, é o deslocamento permanente (doloroso e gososo) da consciência de que "o diabo não há (...) o que existe é homem humano": a certeza (cruel, mas luminosa) de que meu melhor amigo e inimigo sou eu mesmo: minhas conquistas e limitações diárias, enquanto atravesso o deserto de minha existência. Ir, ir indo.
O livro de Rosa é, sem dúvidas, pelo trato sintático e imagens deslumbrantes, um dos textos (sobre a existência) mais belos que a mente humana já criou. Rosa justapõe deus e diabo (frente a frente, lado a lado, dentro a dentro) no indivíduo, para desdobrar (para dentro e para fora) a inatingível realidade (voltas para o frio da razão) do sujeito posto no mundo.
É uma pena que a minisérie televisiva tenha destruído isso ao colocar a linda (e já conhecida do grande público) Bruna Lombardi como intérprete do jagunço Diadorim, amor (e dor, sem rimas piegas) do jagunço Riobaldo. Ao definir, de início, o sexo do mistério, o poder significativo, circunspecto, da obra é bruscamente reduzido. O demo sai do reDEMOinho. A rosa é expulsa do Rosa.
Milton Nascimento, ciente dos limites borrados entre literatura e música (palavra e melodia, real e ficção), restitui a glória e a desgraça do jogo amoroso de Rosa, ao criar uma canção em ondas, em que o sujeito longe do outro (sem sexo) canta o desencanto. "Amor? Pássaro que põe ovos de ferro".
"Travessia", Milton e Fernando Brant, do disco Travessia (1967), dá voz ao sujeito deslocado, desterritorializado e inadaptado no mundo e em si: Riobaldo, personagem de Rosa e nossa metáfora e metonímia.
Fechar o pranto, desacreditar na possibilidade, é se matar. Os paradoxos e as contradições do sujeito solto na estrada põem a vida para girar: "Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver". Canto em qualquer canto.

***

Travessia
(Milton Nascimento / Fernando Brant)

Quando você foi embora fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho prá falar

Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar

Vou seguindo pela vida me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte, tenho muito que viver
Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver

12 junho 2010

163. Índia

O disco Índia (1973) merece registro sublinhado na história da nossa canção: seja pela capa quente, assinada pelo então Waly Sailormoon; seja pela participação de músicos como Dominguinhos, Tenório Jr. e Gilberto Gil; seja pelos temas; e, claro, seja pela presentificação de uma Gal Costa explorando várias matizes (volumes e alturas) de sua voz.
Rodrigo Faour, no livro História sexual da MPB, lembra que Gal Costa "abriu caminho para várias gerações de cantoras mais liberadas e sensuais na MPB". De fato, capas com nossas sereias em poses sensuais surgiram à mancheia. Podia-se, então, cantar usando o corpo.
Lógico, basta lembrar o contexto histórico-político do lançamento, "a capa de seu LP Índia foi censurada e vinha envolta num plástico preto": Clara (obscura) contradição de um país que, pela truculência, tentava impor a "civilização". Haveria, portanto, para tal pensamento tacanho, algo mais incivilizado que a imagem de uma índia expondo em close sua beleza (quase) nua? A tanga de Gal desconsertava nossas meias verdades tupis.
A primeira faixa do disco é a canção-título: "Índia" (José A. Flores / Manuel O. Guerrero / José Fortuna). A adaptação de uma canção paraguaia, com arranjos do maestro Rogério Duprat (um dos responsáveis pela antropofagia musical da Tropicália), canta a possibilidade da separação entre o sujeito e sua musa de sangue tupi e cheiro de flor.
A canção figurativiza (desenha) a índia do título. Os traços corporais (cabelos, lábios, olhos, pele) fotografam aquilo que seduz o sujeito. E Gal, índia paraguaia, em timbre meloso, expõe a angustia do sujeito que entrever a separação de seu bem-querer; e que intenciona ficar com o gosto da musa nos lábios. Lábios que cantam a índia, todo o Paraguai.

***

Índia
(José A. Flores / Manuel O. Guerrero / José Fortuna)

Índia, teus cabelos nos ombros caídos
Negros como as noites que não têm luar
Teus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse teu olhar
Índia da pele morena
Tua boca pequena eu quero beijar

Índia, sangue tupi
Tens o cheiro da flor
Vem que eu quero te dar
Todo meu grande amor

Quando eu for embora para bem distante
E chegar a hora de dizer-te adeus
Fica nos meus braços só mais um instante
Deixa os meus lábios se unirem aos teus

Índia, levarei saudades
Da felicidade que você me deu
Índia, a tua imagem
Sempre comigo vai
Dentro do meu coração
Todo meu Paraguai
Todo meu Paraguai
Todo meu Paraguai

11 junho 2010

162. Estéreo

Para Marcelo Santos

Preta Gil é uma showoman: sabe usar bem a voz que tem; faz uso de suas habilidades de atriz e apresentadora nos shows; e tem um carisma incrível que lhe permite a empatia fácil. Suas apresentações são sempre únicas, regadas com (auto)humor e afirmação da alegria. Rola uma energia de intimidade que (de fato) parece que todos os presentes no show "já são de casa".
A impressão que se tem é que Preta (seja qual foi o tamanho da plateia e do espaço do show) está inteira no palco; ela põe o quanto é, no mínimo que faz: como se embalasse um Maracanã lotado. Essa sensação de verdade, tão incomum em tempos de celebridades fakes, é, sem dúvida, um diferencial na entertainer Preta Gil. Ela diverte e se diverte: trata bem até quem chega de penetra.
Cria tropicalista, Preta usa e abusa dos recursos que as várias sonoridades do Brasil (e além) lhe oferecem - "Tudo me interessa / tudo tem mistério". Mas é nos estratos populares, aqueles que muitas vezes ficam esquecidos pelas grandes gravadoras (e veículos mediáticos), que a cantora investe para enriquecer uma obra pautada na ideia de enfrentar as porradas da vida com o peito aberto. Em um país como o nosso, em que as "minorias" não encontram facilmente ecos de suas questões existenciais, a presença de Preta Gil é uma brisa.
A dobradinha com as composições de Ana Carolina tem rendido bons resultados. Depois do sucesso "Sinais de fogo" (do primeiro disco de Preta, em 2003), "Estéreo" (Noite Preta ao vivo, 2010) tem tirado o pé de muita gente do chão.
"Estéreo", tem mensagem direta: é o canto de um tipo de amor almejado no mundo contemporâneo. Ou seja, como diz o sujeito da letra "eu ponho quem eu quero aqui no meu colchão e se não me abalou eu trato de esquecer". O sujeito está com o outro porque quer, daí não aceitar cobranças ("não venha grudar não"): ame e deixe livre para amar.
Seja como for, quem vai ao show de Preta Gil, e se permite deixar que o corpo seja tocado pela sinestesia intencionada pela cantora, não consegue esquecer: é vida mais real.

***

Estéreo (Ana Carolina)

Só vou te contar porquê você ja é de casa
Eu tenho um lado doce que quase ninguém vê
Se dou festa, trato bem até quem chega de penetra
Quem me beija não consegue me esquecer

Tudo me interessa
Tudo tem mistério
Sou devota da paixão
Menina e menino
Pego em estéreo
Mas não venha grudar, não

Ja tá totalmente sem noção
Ligar de madrugada pra me aborrecer
Depois de me ganhar você quer me perder

Eu ponho quem eu quero aqui no meu colchão
E se não dá valor eu trato de esquecer
É que eu também sou feita de deixar de ser

10 junho 2010

161. Mutante

Dizer "eu te amo" é um fim ou um meio? Ou seja, quando digo "eu te amo" estou querendo fotografar meu sentimento, independente do retorno afetivo (um fim)? Ou estou querendo ouvir do outro (destinatário da frase) a mesma declaração (um meio)? A resposta para esta pergunta é cruel, mas libertadora.
Em "Mutante", Rita Lee e Roberto de Carvalho (Saúde, 1981) desenham um sujeito que tenta se adaptar (mutante que é) aos revezes da relação com o outro, mas deixa vazar certa amargura motivada pela falta de reciprocidade na entrega dos desejos.
Como é característico na obra de Rita Lee, elementos lúdicos são convidados para montar uma mensagem ao mesmo tempo lúdica e reflexiva. Anel de brilhantes e coração são comparados (postos em equivalência) a fim de indiciar aquilo que é precioso para cada um dos parceiros.
Romântica, o sujeito da canção cobra do outro os mesmos investimentos feitos por ele, indicando um amor que ama para ser amado - romântico. O amor pelo outro é um meio de ter o amor do outro para si. Humano e carente profissional, o sujeito tateia no meio da bugiganga os tais caquinhos de um mundo que ele tentou construir.
Sempre lúdica e irreverente (na tentativa de desobstruir a linearidade assertiva da língua) Rita joga com a sonoridade das palavras - "você não me kiss", por exemplo - condensando forma e conteúdo e detonando significações outras, para além do que está sendo ouvido: para a escrita. No caso, podemos imaginar o bilhete (dolorido, visto que "um pouco rejeitada", com "nó na garganta") de despedida. Afinal, como mutante, "eu passo pra outra", canta. Não sem antes ameaçar certo roubo.

***

Mutante
(Rita Lee / Roberto de Carvalho)

Juro que não vai doer se um dia eu roubar
o seu anel de brilhantes
afinal de contas dei meu coração
e você pôs na estante
como um troféu
no meio da bugiganga
você me deixou de tanga
Ai de mim que sou romântica

Kiss baby kiss-me, baby kiss-me
Pena que você não me kiss
Não me suicidei por um triz
Ai de mim que sou assim

Quando eu me sinto um pouco rejeitada
me dá um nó na garganta
Choro até secar a alma de toda a mágoa
depois eu passo pra outra
Como mutante
no fundo sempre sozinho
seguindo o meu caminho
Ai de mim que sou romântica

Kiss baby kiss-me, baby kiss-me
Pena que você não me kiss
Não me suicidei por um triz
Ai de mim que sou assim

09 junho 2010

160. Bim bom

A "Bim bom" de João Gilberto é uma das pouquíssimas composições deste artista que prefere arranjar (ou "melhorar", como ele diz) composições de outros compositores. É interessante e luminoso observar que em uma de suas poucas composições João Gilberto tenha criado um baião. Isso porque, com a bossa nova (de quem João Gilberto é ícone máximo), o baião perde força, enquanto signo brasileiro, para certo público.
A interpretação de Adriana Partimpim, além da mirada lúdica de investir nas aliterações (repetição de sons consonantais) e assonâncias (repetição de sons vocálicos) do texto, para aproximá-lo do público infantil, despoleta a beleza de perceber que na canção (letra e melodia) algo minimalista há átomos da percussão rocambolesca que se desdobra na potência ancestral representada pelo Olodum.
Partimpim une o tribal com o sofisticado (o som e o silêncio), apontando que um está dentro do outro (se auto devoram, para dentro e para fora), de uma forma ou de outra. O resultado é uma festa tropical e brasileira.
As tessituras, trazidas de vários estratos rítmicos brasileiros, colocam os átomos todos (de João) para balançar ao ritmo percussivo cartático e reflexivo vindos do mais profundo Brasil.
Palavra e melodia (antes "antimusical"), em Partimpim dois (2009) ,incitam a dança, a festa, o movimento dionisíaco do corpo, tão infantil quanto necessário ao humano.
O coro das crianças significa o olhar desautomatizado de Partimpim. Olhar que lhe permitiu perceber o diálogo (estético) entre João e Olodum. E é só isso, ou melhor, é isso. Nosso coração (brasileiro) perde assim: fronteiras borradas e misturas impensadas.

***

Bim Bom (João Gilberto)

Bim bom bim bom bim bom
Bim bom bim bom bim bom
Bim bom bim bom bim bom bim bim

É só isso o meu baião
e não tem mais nada não
o meu coração pediu assim, só

08 junho 2010

159. Dança da solidão

Para Carlindo Ferreira

Há momentos em que é preciso aprender a ser só e a só ser. Tais momentos parecem aproximar-nos de nós mesmos, de nossas idiossicrasias, inícios, fins e meios. Em um mundo cada vez mais barulhento, esse tipo de solidão (há muitos tipos de solidão) aparece como um oásis distante. Esta solidão dói e estamos sempre buscando afastar (ludibriar) a dor (aspirinas surgem à mancheia) sem antes entender seu sentido.
Longe de apontar para uma individuação, ao contrário, penso que esta solidão conecta o sujeito com sua humanidade, portanto, com o emaranhado de pares ao redor. Ou seja, é um mergulho que se desdobra para dentro e para fora.
"Dança da solidão", de Paulinho da Viola (A dança da solidão, 1972), tematiza o mergulho no labirinto de labirintos em que o sujeito penetra quando percebe sua condição humana (danço eu dança você) de ser sozinho, seja em seus sentidos, seja em seus pensamentos.
O sujeito criado por Paulinho, desiludido, sem ter um canto exterior, canta a sua própria amargura (o beijo amargo nos dentes de chumbo cruéis de seu estado). Obviamente, não sabemos (ao certo) lidar com a solidão (que possibilita observar melhor as coisas).
Solidão nem sempre rima com solidez. O sujeito temeroso com seu próprio destino lembra daqueles que, desiludidos, perdem a fé na realidade (que é sempre ficcional) e tentam a morte. Mas, no turbilhão de sensações pesadas, ele vislumbra que solidão é apenas uma palavra. Descobre, cantando a lua (musa dos solitários), que ele pode dançar com com a solidão, fazer dela seu par criativo, fazer do limão uma limonada.
A palavra "solidão" dança (se espalha como a lava que cobre tudo) ao longo da canção. Parceira do sujeito, incentiva torneios, piruetas e certezas (antes) impensadas. Como o fato de que "apesar de tudo existe uma fonte de água pura, quem beber daquela água não terá mais amargura".

***

Dança da solidão (Paulinho da Viola)

Solidão é lava
que cobre tudo
amargura em minha boca
sorri seus dentes de chumbo
Solidão, palavra
cavada no coração
resignado e mudo
no compasso da desilusão

Desilusão, desilusão
Danço eu danço você
na dança da solidão
Carmélia ficou viúva
Joana se apaixonou
Maria tentou a morte
por causa do seu amor
Meu pai sempre me dizia
meu filho tome cuidado
quando penso no futuro
não esqueço meu passado

Quando chega a madrugada
meu pensamento vagueia
corro os dedos na viola
contemplando a lua cheia
Apesar de tudo existe
uma fonte de água pura
quem beber daquela água
não terá mais amargura

07 junho 2010

158. Felicidade urgente

Elba Ramalho é frevo mulher. Sua presença física no palco desestabiliza qualquer tristeza, põe o corpo para vibrar noutra sintonia, mais feliz. Felicidade urgente (1991), como sugere o título e o domínio vermelho vibrante da capa, é um disco que impõe paixão e afirmação da vida.
A canção "Felicidade urgente", de Cláudio Zoli e Ronaldo Bastos, aponta para uma questão discutida e defendida por Clément Rosset, no livro Alegria: a força maior: a alegria não difere da alegria de viver. Ou seja, quem é alegre não precisa de motivos (externos) para estar alegre. A alegria é desmotivada. O sujeito alegre "é incapaz de dizer o motivo de sua alegria e a natureza daquilo que o enleva". Do mesmo modo que "o melancólico não sabe precisar o motivo de sua tristeza nem a natureza daquilo que lhe falta". É tudo ou nada.
O sujeito da canção, por exemplo, não pontua nenhum motivo exterior para desejar (pedir e gritar) "felicidade urgente para todos nós". Obviamente, apaixonado (pela vida), ele quer fazer o outro feliz (pergunta se o outro está tão feliz quanto ele), para, assim, ser feliz também. No entanto, isso não nega, pelo contrário, evidencia, sua predisposição ao estado de felicidade.
Aqui é preciso deixar claro que a alegria não nega a dor. Ao cantar "a vida me fez deste jeito", o sujeito sugere os perrengues vividos, porém transformados em motores que lhe ajudam a querer seguir a vida. Estas aparentes contradições se auto devoram na constituição e internalização da alegria no interior do sujeito. Ele, nietzschianamente, quer ficar alegre com todas as alegrias (e dores).
"Há na alegria um mecanismo aprovador que tende a ir além do objeto particular que a suscitou", diz Rosset. O sujeito de "Felicidade urgente" (louco pra viver em paz) procura paraísos. Ele sabe (de cor) que querer isso é o melhor para ele (pouca gente tem direito a ser feliz). Ele (Elba figurativiza bem a imagem), no mundo tão imperfeito, fino menino se inclina para o lado do sim, da afirmação da existência.

***

Felicidade urgente
(Cláudio Zoli/ Ronaldo Bastos)

Nunca mais eu vou voltar

Essa estrada é meu destino
Vou seguir a minha vida
Vou achar o meu lugar

Louco pra viver em paz

Eu procuro paraísos
Em lugares esquecidos
Em viagens ao luar

Eu vi a cor, sonhos
E sei de cor, o que é melhor pra mim

A vida me faz desse jeito
O mundo é tão imperfeito
Pouca gente tem direito a ser feliz
O tempo passa de repente
Felicidade urgente para todos
Para todos nós

Quero te fazer feliz
Quero ser feliz também
Com você ta tudo bem?
Ta tudo bem?

Não vou mais olhar pra trás no caminho do infinito
Encontrei uma razão
E me perdi no teu olhar

Eu sempre quis muito mais
Mais do que era preciso
Quis milagres absintos e delírios de prazer

Eu vi a cor, sonhos
Eu seu de cor, o que é melhor pra mim
A vida me fez desse jeito
O mundo é tão imperfeito
Pouca gente tem direito a ser feliz
O tempo passa de repente
Felicidade urgente para todos
Para todos nós

06 junho 2010

157. Façamos (Vamos amar)

O livro Cole Porter - canções versões (1991) é uma beleza. Dito isso, qualquer adjetivo para o disco Cole Porter, George Gershwin - Canções, Versões (2000) seria redundante. Mas digo: o disco é beleza pura. Estes projetos (especialmente o disco), ambos de Carlos Rennó, prestam tributo à música destes dois compositores e às sonoridades (gestualidades vocais) que eles emprestaram à canção brasileira.
O disco apresenta uma coletânea para clássicos da canção americana, com ênfase nas composições feitas para musicais. Canções que entraram para o imaginário da história (universal) da canção. São 14 (dos anos 1920 aos 1940) interpretadas por um elenco primoroso: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Elza Soares, Rita Lee, Tom Zé, Zélia Duncan, Cássia Eller, Sandra de Sá, Ed Motta, Paula Toller, Carlos Fernando, Jussara Silveira, Mônica Salmaso e Jane Duboc.
As versões de Carlos Rennó (algumas em parceria) captam as matrizes temáticas, formais e estilísticas adensando-as com tempero brasileiro. Os arranjos também merecem ouvidos atentos para suas sofisticações. É, sem dúvida, um trabalho precioso.
Dentre as preciosidades, temos "Façamos (Vamos amar)", de Cole Porter. Interpretada por Elza Soares e Chico Buarque, a canção é uma ode ao amor e ao sexo; um convite ao deleite da existência a dois (ou mais); e uma celebração à diversidade afetiva.
O sujeito da canção abre uma enorme cadeia de comparações (são 65 versos), a fim de seduzir (persuadir) o outro. A mensagem é direta: Se todo o mundo faz, por que não fazemos também? No entanto, os exemplos oferecidos (passando por vários reinos e sentidos) apontam a malícia e o requinte (cruel e arrebatador) do sujeito. Não há como escapar.
Se o diálogo erótico entre as vozes de Elza e Chico (feminino e masculino) podem, a princípio, sugerir uma afirmação única de sexualidade, os versos (argumentos) abrem outros (os vários) caminhos para o sexo. "Lá em San Francisco muitos gays fazem", por exemplo.
A natureza (a vida) é uma explosão de possibilidades. O sexo, o desejo e a vontade de fazer (por prazer, pelo sabor do gesto) proliferam por toda parte.
Ao final, podemos ouvir a canção como um convite sexual dirigido a nós (ouvintes). Um convite vindo de vozes (potências) femininas e masculinas, ao gosto de quem ouve. O objetivo é estimular o fazer. Façamos, vamos amar.

***

Façamos (vamos amar)
Cole Porter, versão: Carlos Rennó

Os cidadãos, no Japão, fazem,
Lá na China um bilhão fazem,
Façamos, vamos amar.
Os espanhóis, os lapões fazem,
Lituanos e letões fazem,
Façamos, vamos amar
Os alemães, em Berlim, fazem,
E também lá em Bonn;
Em Bombaim, fazem:
Os hindus acham bom.
Nisseis, nikkeis e sanseis fazem,
Lá em San Francisco muitos gays fazem,
Façamos, vamos amar.

Os rouxinóis, nos saraus, fazem,
Picantes picapaus fazem,
Façamos, vamos amar.
Uirapurus, no Pará, fazem,
Tico-ticos no fubá fazem,
Façamos, vamos amar.
Chinfrins galinhas a fim fazem,
E jamais dizem não;
Corujas, sim, fazem,
Sábias como elas são.
Muitos perus, todos nus, fazem,
Gaviões, pavões e urubus fazem,
Façamos, vamos amar.

Dourados no Solimões fazem,
Camarões em Camarões fazem,
Façamos, vamos amar.
Piranhas, só por fazer, fazem,
Namorados, por prazer, fazem,
Façamos, vamos amar.
Peixes elétricos bem fazem,
Entre beijos e choques;
Cações também fazem,
Sem falar nos hadoques.
Salmões no sal, em geral, fazem,
Bacalhaus no mar em Portugal fazem,
Façamos, vamos amar.

Libélulas, em bambus, fazem,
Centopéias sem tabus fazem,
Façamos, vamos amar.
Os louva-deuses, com fé, fazem,
Dizem que bichos-de-pé fazem,
Façamos, vamos amar.
As taturanas também fazem
Com ardor incomum;
Grilos, meu bem, fazem,
E sem grilo nenhum.
Com seus ferrões, os zangões fazem,
Pulgas em calcinhas e calções fazem,
Façamos, vamos amar.

Tamanduás e tatus fazem,
Corajosos cangurus fazem,
Façamos, vamos amar.
Coelhos só, e tão-só, fazem,
Macaquinhos num cipó fazem,
Façamos, vamos amar.
Gatinhas com seus gatões fazem,
Dando gritos de "ais";
Os garanhões fazem;
Esses fazem demais.
Leões ao léu, sob o céu, fazem,
Ursos lambuzando-se no mel fazem,
Façamos, vamos amar.