"Há um incêndio sob a chuva rala", Cazuza cantou em "Blues da piedade". Ou seja, para além das aparências há algo, no caso, mais intenso e inflamável. Se com Nietzsche começamos a observar que além do bem e do mal só há o bem e o mal, a poesia (a canção) desde sempre tenta criar situações em que o indivíduo possa ser confrontado com este além, este pós que "surpreende a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando é o óbvio", como Caetano canta em "Um índio".
A poesia presentifica o óbvio: ilumina as coisas simples da vida, dá-lhes sentidos e faz conexões insuspeitadas ao indivíduo imerso no mar do cotidiano. O poeta, eis um dos motivos porque ele deveria ser expulso da república, capta o desejo de sua gente e, com os elementos mais ordinários, intervem na ordem dada como certa, expondo-a sem máscaras.
Em "Corsário", de João Bosco e Aldir Blanc, o sujeito canta aquilo que está encoberto por certa frieza: seu coração tropical. Ele ferve, apesar do cofre gelado; nele a voz (do cantor) encontra o motor exato para seguir: "navegar é preciso" e estar no mar é condição humana demasiada humana.
A neve não resiste ao coração tropical: ao sangue (quente) do poeta, e que lhe faz escrever "mar" como saída e destino. O mar - tempo/espaço líquido das paixões - aparece como o reduto propício ao sujeito sozinho e disposto ao abandono-de-si; mas desejoso, em um cais imaginado, do reencontro consigo: a individuação, a distinção entre a polifonia marítima.
O corsário é o sujeito armado de solidão e calor. Ele parte com seu canto (suas palavras - mar - e sua melodia) o gelo (a automatização) cotidiano: confortável e cômoda e, por isso, sedutora e prisioneira. É preciso ir indo.
Pirata, o sujeito rouba da vida a própria vida motivadora de mobilidade. Ele canta o mar (com seu horizonte infinito) para se lançar ao mar arrebentando as amarras que lhe prendem os sentidos e lhe congela o juízo.
Guardada no disco Essa é a sua vida (1981), de João Bosco, "Corsário" é o canto do homem frio em início de despertamento para novas possibilidades de vida. Cansado de ser fiel às próprias certezas, ele entoa e plasma o prelúdio (mesmo em ritmo de tartaruga) do novo tempo: há um cheiro longínquo de primavera (roseirais) no ar. E cada palavra cantada sua é rosa germinando; é fenda no gelo. E em cada palavra (mensagem lançada ao mar) sua está o sujeito todo, inteiro, se dando de graça à graça (divina) do ouvinte.
Em "Corsário", de João Bosco e Aldir Blanc, o sujeito canta aquilo que está encoberto por certa frieza: seu coração tropical. Ele ferve, apesar do cofre gelado; nele a voz (do cantor) encontra o motor exato para seguir: "navegar é preciso" e estar no mar é condição humana demasiada humana.
A neve não resiste ao coração tropical: ao sangue (quente) do poeta, e que lhe faz escrever "mar" como saída e destino. O mar - tempo/espaço líquido das paixões - aparece como o reduto propício ao sujeito sozinho e disposto ao abandono-de-si; mas desejoso, em um cais imaginado, do reencontro consigo: a individuação, a distinção entre a polifonia marítima.
O corsário é o sujeito armado de solidão e calor. Ele parte com seu canto (suas palavras - mar - e sua melodia) o gelo (a automatização) cotidiano: confortável e cômoda e, por isso, sedutora e prisioneira. É preciso ir indo.
Pirata, o sujeito rouba da vida a própria vida motivadora de mobilidade. Ele canta o mar (com seu horizonte infinito) para se lançar ao mar arrebentando as amarras que lhe prendem os sentidos e lhe congela o juízo.
Guardada no disco Essa é a sua vida (1981), de João Bosco, "Corsário" é o canto do homem frio em início de despertamento para novas possibilidades de vida. Cansado de ser fiel às próprias certezas, ele entoa e plasma o prelúdio (mesmo em ritmo de tartaruga) do novo tempo: há um cheiro longínquo de primavera (roseirais) no ar. E cada palavra cantada sua é rosa germinando; é fenda no gelo. E em cada palavra (mensagem lançada ao mar) sua está o sujeito todo, inteiro, se dando de graça à graça (divina) do ouvinte.
***
Corsário
(Aldir Blanc, João Bosco)
Meu coração tropical
está coberto de neve, mas,
ferve em seu cofre gelado
e a voz vibra e a mão escreve: mar
Bendita a lâmina grave
que fere a parede e trás
as febres loucas e breves
que mancham o silêncio e o cais
Roseirais
Nova Granada de Espanha
Por você, eu, teu corsário preso
vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar,
me arrastar até o mar,
procurar o mar
Mesmo que eu mande em garrafas
mensagens por todo o mar,
meu coração tropical
partirá esse gelo e irá
com as garrafas de náufrago
e as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha
e as rosas partindo o ar
(Aldir Blanc, João Bosco)
Meu coração tropical
está coberto de neve, mas,
ferve em seu cofre gelado
e a voz vibra e a mão escreve: mar
Bendita a lâmina grave
que fere a parede e trás
as febres loucas e breves
que mancham o silêncio e o cais
Roseirais
Nova Granada de Espanha
Por você, eu, teu corsário preso
vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar,
me arrastar até o mar,
procurar o mar
Mesmo que eu mande em garrafas
mensagens por todo o mar,
meu coração tropical
partirá esse gelo e irá
com as garrafas de náufrago
e as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha
e as rosas partindo o ar
14 comentários:
Gosto bastante da versão de Ney Matogrosso de 1974, no album Água do Céu - Pássaro.
a versão da elis é definitiva,mesmo não sendo feita em estúdio.Mesmo com a análise, a letra não me ficou muito clara.eu devo ser meio tonto mesmo.
Joao bosco sozinho e seu violao é sempre a melhor pedida, inigualavel o mestre !
Caramba...eu sempre pensei que esta canção fosse uma coisa de bilhete de amigo para amigo, com pedido conselho socorro de medo da morte que andava rondando – ah, rondava feito lobo sem fome mas sempre faminto. Acho que a Elis cantou isso melhor, inteiro e inteira, ela e a carreira que terminavam, juntas; e talvez por acaso ou quase foi naquele mesmo ano, 1982, que a canção nasceu quando Elis morreu. Estava a nevar demais naquele tempo. E o tempo todo.
Que nem hoje.
Que nem sempre.
Passou errado! Foi mal: a canção foi composta no quase meio dos 70. Mas "nascer" assim com corpo e voz pra depois morrer, eu penso, foi com a gravação da Elis. será?
ESSA MÚSICA TEM UM CONTEXTO TOTALMENTE SÓCIO-POLITICO, UMA CRITICA AO BRASIL OPRESSOR E DITADOR DOS ANOS 60 E 70, FALA DO EXILIO, DE VOLTAR, "PROCURAR O MAR" COM INSISTÊNCIA A (PÁTRIA), CORTAR COM O REGIME OPRESSOR ATRAVÉS DA COMUNICAÇÃO (MESMO JOGANDO GARRAFAS...)
CORTA COM A LÂMINA A GELEIRA... O ESTADO FRIO E INÉRTE...É DISSO QUE FALA A MÚSICA...CORSÁRIO (NAVEGADOR) SEM PODER NAVEGAR POR ESTAR PRESO POR VC (PÁTRIA)...
ESSA MÚSICA TEM UM CONTEXTO TOTALMENTE SÓCIO-POLITICO, UMA CRITICA AO BRASIL OPRESSOR E DITADOR DOS ANOS 60 E 70, FALA DO EXILIO, DE VOLTAR, "PROCURAR O MAR" COM INSISTÊNCIA A (PÁTRIA), CORTAR COM O REGIME OPRESSOR ATRAVÉS DA COMUNICAÇÃO (MESMO JOGANDO GARRAFAS...)
CORTA COM A LÂMINA A GELEIRA... O ESTADO FRIO E INÉRTE...É DISSO QUE FALA A MÚSICA...CORSÁRIO (NAVEGADOR) SEM PODER NAVEGAR POR ESTAR PRESO POR VC (PÁTRIA)...
Quem sabe se se deve ao erro ortográfico! Traz as febres loucas, verbo trazer!
Quem sabe se se deve ao erro ortográfico! Traz as febres loucas, verbo trazer!
E só aos sessenta anos me aparece o desejo de ir "além-mar" e conhecer a poesia desta belíssima composição musical. Surpreendente a posição do sujeito buscando além dele mesmo aquilo que está dentro dele. Encantada.
Anônimo, obrigado pela explicação, adoro essa musica
Não há erro de concordância. O sujeito: a lâmina grave fere e traz. A lâmina traz as febres...
Essa música sempre me intrigou por não entender sobre o que falava. Faz sentido a explicação do Prof. Leonardo, mas também cabe muito bem no contexto sócio-político da época. Adorei entender um pouco mais dela. Obrigada.
“Pirata, o sujeito rouba da vida a própria vida motivadora de mobilidade.” Forte isso.
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