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27 setembro 2010

270. Por debaixo dos panos

"Por debaixo dos panos", de Céceu, interpretada por Marinês (Cantando pra valer, 1978) é uma lindeza. A saudosa Marinês - rainha soberana do forró, sacana ou não, ou melhor, "rainha do xaxado", como Luiz Gonzaga a denominou - impunha fogo e paixão a tudo que cantava.
Sua entoação límpida, marcada pela dicção das ruas (feiras do nordeste), empresta às canções o vigor (certo ar épico) e a graça que arrebatavam os ouvintes. Sua vasta obra merece e precisa ser revista, tamanho potencial do registro irônico, bem humorado (sem papas na língua) e alegre (feliz) de ser brasileiro (e nordestino) .
Mulher e nordestina, Marinês arrastava sua gente na voz. Suas canções (suas interpretações) fazem qualquer um levantar, sacudir a poeira e dar a volta por sua, se me permitem um clichê. Há uma liberdade de temas, e um modo de cantar (dizer) os temas, que faz falta no cenário musical.
Um exemplo? Basta atentar para a supressão do "s" de "panos", em "Por debaixo dos panos", ao cantar, para perceber o quanto a dicção de Marinês queria se aproximar (com êxito) da "palavra falada" do povo. Ou seja, ela investia na língua viva do cotidiano e suas discordâncias entre artigo e sujeito. Desassossego e festa da vontade de vida do sertão. É certo que tal supressão já está prevista na letra, mas, na voz de Marinês, pela sua trajetória humilde, ganha novos contornos.
A canção é a voz de um sujeito que, também incluído na questão, registra o nosso famoso "jeitinho brasileiro". Não à toa, Ney Matogrosso, sempre ele, com a mirada aguda na nossa moral tacanha, gravou "Por debaixo dos panos": canção que escracha, com lucidez, o jeito brasileiro de sobreviver.
A lista de atitudes - perdas e ganhos; subornos e paredões -, que abre o leque de nosso movimento malandro diante das normas, a fim de usufruir apenas o lado bom da existência, é sempre sublinhada pelo verso-título: "por debaixo dos panos". Isso engendra deboche e reflexão, em um equilíbrio difícil de ser alcançado em arte, não só em quem canta, mas, talvez principalmente, em quem ouve.
Os versos simples, mas próximos do modo de ser do ouvinte (nossa vocação à dissimulação: em, por exemplo, deixar todas e quaisquer decisões e responsabilidades para o Estado, esvaziando-nos de comprometimentos), é a isca precisa e cruel dessa canção.

***
Por debaixo dos panos
(Cecéu)

O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Ou se vou perder
É por debaixo dos pano

É debaixo dos pano
Que a gente não tem medo
Pode guardar segredo
De tudo que se vê
É debaixo dos pano
Que a gente fala do fulano
E diz o que convém

É debaixo dos pano
Que eu me afogo
Que eu me dano
Sem perder o bem

O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Ou se vou perder
É por debaixo dos pano

É debaixo dos pano
Que a gente esconde tudo
E não se fica mudo
E tudo quer fazer
É debaixo dos pano
Que a gente comete um engano
Sem ninguém saber

É debaixo dos pano
Que a gente
Entra pelo cano
Sem ninguém ver

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