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17 setembro 2010

259. Eu não sou eu

O Sr. José, do livro Todos os nomes, de José Saramago, reflete que o mais importante é o que o tempo faz mudar nas pessoas, no rosto delas, e não o nome delas: "que nunca varia". O meu nome não diz tudo o que sou, apesar de carregar tal fardo.
Penso nisso enquanto ouço "Eu não sou eu" - a bela canção de Lucina e Zélia Duncan, gravada no disco Pré pós tudo bossa band (2005). Aqui, o sujeito, aparentemente diante do espelho de si, ou melhor, diante do destinatário da canção, desdobra-se para dentro de si, investigando aquilo que lhe faz ser quem é. Afinal, não-ser é uma substância: não-ser. Como alguém se torna aquilo que é? Cantando. O sujeito, portanto, deixa de ser, quando canta que não é.
Atravessados que somos, pelo olhar (canto) do outro, não temos uma imagem única de nós mesmos. Assim como não há uma verdade (pura e fechada), ficcionalizamos (ou somos ficcionalizados?) na medida em que as circunstâncias nos cobram.
Sim, o "eu" está perdido entre vários "eus" que, circularmente, sou eu. O melhor exemplo para isso vem do sujeito da canção: "sou sua miragem, sombra fresca da sua realidade". Ora, quando alguém nos diz "eu te amo" criamos uma dívida impagável com este alguém: passamos a deixar de ser quem somos e passamos a ser o "amor" do outro. Agora, multipliquemos isso pelas conjunções e disjunções afetivas ao longo da vida e pensemos o quanto já nos fragmentamos: quantas vezes deixamos de ser, para ser (de outro modo).
Daí que a realidade é incontável, simplesmente porque o real (a verdade, enquanto reservatório de certa essência do ser) é inapreensível. Só "tocamos" o real através da ficção, que é o único real possível. Tornamo-nos, assim, respostas e ilusões de ótica palpáveis às expectativas alheias, que, noutro plano, são nossas.
O sujeito lança para o destinatário de seu canto amoroso (porque sincero no gesto investigativo que engendra) a pergunta cuja resposta ele mesmo teme vislumbrar: "Por que te mostro metade do meu amor inteiro?" Como mostrar o amor (inteiro) se os sentimentos são coisas sobre as quais as palavras não dão conta? Há sempre algo escapando à nossa compreensão: uma terceira margem que o canto (música e narrativa) tenta conter.
Há, entre as questões do sujeito de "Eu não sou eu", a melancolia de quem não conseguiu, apesar de ter tentado, dar o fruto doce da vida ao outro. Com as armas no chão (e aqui a interpretação de Zélia Duncan dá luz à mensagem: com sílaba por sílaba sendo plenamente ditas) ele assume ter se perdido na imaginação do outro: "Sou alguém que você imaginou".
Duplos, estamos sempre à busca do melhor canto, do melhor argumento exterior "que nos defina", para aí colarmos e seguirmos até à saturação (e à nova busca). Conclusão terrível, mas libertadora: somos incapazes de definições (mas, por isso, grávidos de pensamentos luminosos e corajosos), e cheios de vontade de ser "eu".

***
Eu não sou eu
(Lucina / Zélia Duncan)

Eu sou sua miragem
Sombra fresca da sua realidade
Sou sua resposta
Sua ilusão de ótica palpável
Seu improvável
Seu conforto e seu pesadelo
Me diz primeiro
Por que te mostro metade do meu amor
inteiro?
Me diz primeiro
Por que não houve um segundo beijo?
E depois um terceiro?

Eu sou seu corpo mais forte
Seu alvo atingido
Sua semente que nasceu
E não consegue
Te dar o fruto doce, já crescido, eu não sou eu
Eu não sou eu
Sou alguém que você imaginou
Uma visão do seu amor

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