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01 setembro 2010

244. Oceano

Em muitas tradições, o mar (ilimitado e misterioso) é a fonte da vida: maternal e despoletador de possibilidades, renovação e transformação. E na psicologia, o oceano é símbolo do inconsciente: do inapreensível.
Na canção (quase emblema) de Djavan - Oceano -, o mar rivaliza com o deserto (sígno do elemento terra), a fim de figurativizar o estado de solidão e solitude do sujeito que canta.
Lançada no disco Oceano (1989), que, não sem intenção, tem, na capa, o cantor vestindo uma camisa azul sobre um fundo branco (Iemanjá: rainha do mar), a canção tenta traduzir a voz do alumbramento de um novo dia que aperta, ainda mais, com sua beleza, o estado de apatia (entrega à dor de existir) do sujeito: a visão do tempo em ruína.
De fato, quando estamos tristes, ou, pelo menos, mais introspectivos, o simples (e belo) brilho do sol (lá fora) machuca e intensifica nossa situação. As dúvidas (cadê você? esquecera de mim?) queimam nossa pele e enchem nossos ouvidos de silêncio. A ausência do outro (que canta a vida para o sujeito) pára o crescimento da vida: cinde os ciclos.
O sujeito é quando o outro está. Entregue a si, o sujeito faz monólogo em voz alta a dura certeza: a irredutível e insofismável solidão de ser. Afinal, ninguém sabe o que sentimos. A arte, grosso modo, é uma tentativa de dizer o que somos. Escrevemos ou cantamos para narrar nossa história: inventar um sentido comum; que nos conecte ao outro (igual e diferente de nós). Embora, saibamos de antemão que as palavras não dão conta de contar sentimentos.
Nossa sensibilidade é afetada pelo atravessamento (rede complexas de acontecimentos) de nossa história: daí porque uns são, uns não, tocados pela "mesma" (sempre diferente) oferta da vida. O amor, "ferida que dói e não se sente", como Camões cantou, é sempre festa na prisão, conclui o sujeito de "Oceano". O amor depende de mim pois, mesmo tendo ido embora, eu ainda amo o outro. A distância, por vezes, agrava significantes de nossa constituição: daquilo que vai de mim para o outro.
Por isso, "amar é um deserto e seus temores": a dúvida permanente. Do mesmo modo que ninguém sabe o que o sujeito sofre, ele, por sua vez, não sabe (nem nunca saberá: a verdade é inapreensível) qual é o sentimento do outro em relação a ele. A metáfora do elemento água (aquilo que escorre, mina e não tem forma) é impecável para a construção daquilo da imagem daquilo que o sujeito sente e quer dizer.
O convite de retorno do outro ("vem me fazer feliz porque eu te amo") aponta o desperta do sujeito para uma possível consciência-de-si. Certo da dúvida, ele deseja amar o outro com reciprocidade para juntos esquecerem da (quase) dor que é amar. Não há contradição: há convergência de luzes do fim do túnel. Talvez por isso Cazuza tenha cantado: "o nosso amor a gente inventa". Afinal, o que a gente não inventa não existe.
O sujeito precisa do outro; ter alguém para cantar (como a mãe tem o filho). Só assim a vida é mais vida: vida que não é menos do sujeito do que da canção. "Só sei viver se for por você": viver é cantar o outro, pois assim afirmo minha própria existência - na (minha) voz que ouço sair de mim.

***

Oceano
(Djavan)

Assim
Que o dia amanheceu
Lá no mar alto da paixão,
Dava prá ver o tempo ruir
Cadê você?
Que solidão
Esquecera de mim?

Enfim,
De tudo o que
Há na terra
Não há nada em lugar
Nenhum
Que vá crescer
Sem você chegar
Longe de ti
Tudo parou
Ninguém sabe
O que eu sofri

Amar é um deserto
E seus temores
Vida que vai na sela
Dessas dores
Não sabe voltar
Me dá teu calor

Vem me fazer feliz
Porque eu te amo
Você deságua em mim
E eu oceano
E esqueço que amar
É quase uma dor

Só sei viver
Se for por você

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