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07 setembro 2010

250. A minha alma

Para Fabiana Farias

A certa altura do livro Todos os nomes, de José Saramago, o narrador dispara: "As consciências calam-se mais do que deviam, por isso é que se criaram as leis". De fato, tivéssemos nós o ruído/silêncio permanente da consciência-de-si, estaríamos sempre a confrontar a moral imposta pelos senhores: promover-se-ia a pane (criativa) no sistema.
É imbuído por tais inquietações que surge o canto do sujeito de "A minha alma", de Marcelo Yuka (registrado no disco Lado b lado a, do Rappa, 1999): tentativa de forjar uma terceira margem, para além dos lados dados (A e B) da sociedade.
Aparentemente contraditória, a alma, signo de calma e paz, aqui se despe de qualquer transcendência; se arma contra o sossego: se insurge contra o marasmo (alienado e alienante) que empurra a massa para o falso estado de glória.
A alma do sujeito quer ter voz, quer restituir para si a subjetividade perdida no turbilhão massivo: que devora e incorpora a todos, silenciando-nos - levando-nos a crer que a vida "é assim mesmo": "se melhorar estraga".
A mensagem é direta e incisiva: "é pela paz que eu não quero seguir", "caminhando e cantando e seguindo a canção", completo. Ele quer ir: por que não? E ao cantar (e difundir sua meta via meios massivos) o sujeito convoca o ouvinte: movimenta-se no sentido de cindir os meios: usa-os a seu favor.
A alma (pulsão de vida: ânima) é a arma, quando tem suas forças ativas e reativas em equilíbrio. Note-se que "paz sem voz é medo" e o medo, como potência paralisante, é o contrário da paz; é aceitar sem questionar: como quer o "sim, Senhor".
O sujeito da canção, ora fala com o ouvinte, ora fala consigo, com sua alma (que tem voz questionadora), em tentativa inquieta (típica de quem estar incomodado com o rumo das coisas: e quer mudar) de encontrar o discernimento entre o que precisa mudar, ou não.
Ele, então, começa a suspender o juízo (impõe a dúvida) para entender qual atitude deve tomar. Faz isso usando a segunda pessoa - você - para assim, além de se posicionar, trazer o ouvinte para junto da proposta.
As grades dos condomínios trazem proteção de que, contra o quem? Elas resolvem ou mascaram problemas, cada vez mais "invisíveis", visto que já naturalizados? O convite é claro: a promoção consciente de uma revolução que negue "drogas de aluguel", consumidas, sem crivos, e impostas pelo poder (vídeo coagido: sem rosto) que governa a massa, pelos indivíduos. Ou seja, o sujeito de "Minha alma" quer devolver o indivíduo a si mesmo.

***
A minha alma
(Marcelo Yuka)

A minha alma tá armada e apontada
Para cara do sossego
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo

As vezes eu falo com a vida,
As vezes é ela quem diz:

"Qual a paz que eu não quero conservar,
Prá tentar ser feliz?"

As grades do condomínio
São prá trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão

Me abrace e me dê um beijo,
Faça um filho comigo
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo, domingo!

Procurando novas drogas de aluguel
Neste vídeo coagido
É pela paz que eu não quero seguir admitindo

Um comentário:

Fabiana Farias disse...

Isso foi um verdadeiro presente!
Essa canção é tão linda e fala de coisas que nos engolem. Como a rotina, o comodismo e o medo. Para pensar.
Existe algo mais perigoso do que dar um tiro no nosso aparente sossego?

beijos!!!