No livro Histórias de canções: Chico Buarque, Wagner Homem registra que a canção "A voz do dono e o dono da voz", de Chico Buarque, foi uma "resposta irada e irônica" à uma discussão entre Chico e sua gravadora de então - 1981.
Outra informação importante oferecida por Wagner Homem é a de que "a expressão 'o dono da voz' apareceu pela primeira vez nessa canção e rapidamente foi incorporada ao vocabulário da língua portuguesa. Era uma brincadeira de Chico com o lema 'The master's voice' (A voz do dono), da gravadora RCA Victor, que exibia um cachorrinho observando atentamente um gramofone".
A canção favorece uma complexa questão. Seja como for, temos, em "A voz do dono e o dono da voz", um sujeito que observa e registra a querela (amorosa e erótica) entre a voz e seu dono. "Casal igual a nós, de entrega e de abandono", diz o sujeito chamando o ouvinte para tomar parte na briga e escolher seu lado: do dono ou da voz?
A voz só deseja ser prensada: tornar-se disco e oferecer-se, de graça (divina), no prato (vinil) aos ouvintes. Eis a referência e desejo de liberdade da voz de todo cantor: ser prato - ganhar espaço nos espaços físicos (e nos corações) dos ouvintes.
O dono, por outro lado, impõe contras e prós (aqui a inversão na expressão "prós e contras" figurativiza a dança de posições das personagens da canção). O dono segura as rédeas da voz que quer "ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos". E aqui entra , como sempre, o sofisticado jogo estético-político engendrado por Chico Buarque.
Ao fechar a canção com o verso "o que é bom para o dono é bom para a voz" - canto paralelo (paródia, paráfrase) de "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil", a inoxidável frase dita por Juracy Magalhães, ministro das Relações Exteriores do governo militar brasileiro - Chico, ironicamente, amarra a discussão lançando, mais uma vez, o problema para o ouvinte.
Ou seja, esta lógica tem lógica? Afinal, quem pode mais: a voz do dono, ou o dono da voz? Por um lado somos forçados a pensar que "se ele é dono" ele pode mais. No entanto, sem a voz, o que o dono pode?
A canção desliza, ora dando voz ao dono - que só pode falar através da (sua) voz -, ora à própria voz - que quer se rebelar (ateia), mas acaba morando com (n)outro algoz. Este destino fatalista (a redundância faz-se necessária) da voz parece ser o mote absoluto, portanto.
Cida Moreyra, no disco Cida Moreyra canta Chico Buarque (1993), com a lucidez musical que lhe é própria, dá voz a esta discussão, investindo nos bemóis (aquele acidente musical que altera uma nota musical abaixando-lhe um semitom), a fim de tencionar (guerra e paz) e iluminar a questão: criando a imagem acústica das tentativas (fracassadas) de rebelião da voz.
Ao final, a voz precisa do dono (sem ele, ela não seria prensada e não giraria para todos nós: ouvintes) e vice e versa (sem ela, ele não teria poder). Cabe ao casal, como a qualquer casal, "igual a nós", encontrar os melhores e felizes meios de convivência.
A canção favorece uma complexa questão. Seja como for, temos, em "A voz do dono e o dono da voz", um sujeito que observa e registra a querela (amorosa e erótica) entre a voz e seu dono. "Casal igual a nós, de entrega e de abandono", diz o sujeito chamando o ouvinte para tomar parte na briga e escolher seu lado: do dono ou da voz?
A voz só deseja ser prensada: tornar-se disco e oferecer-se, de graça (divina), no prato (vinil) aos ouvintes. Eis a referência e desejo de liberdade da voz de todo cantor: ser prato - ganhar espaço nos espaços físicos (e nos corações) dos ouvintes.
O dono, por outro lado, impõe contras e prós (aqui a inversão na expressão "prós e contras" figurativiza a dança de posições das personagens da canção). O dono segura as rédeas da voz que quer "ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos". E aqui entra , como sempre, o sofisticado jogo estético-político engendrado por Chico Buarque.
Ao fechar a canção com o verso "o que é bom para o dono é bom para a voz" - canto paralelo (paródia, paráfrase) de "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil", a inoxidável frase dita por Juracy Magalhães, ministro das Relações Exteriores do governo militar brasileiro - Chico, ironicamente, amarra a discussão lançando, mais uma vez, o problema para o ouvinte.
Ou seja, esta lógica tem lógica? Afinal, quem pode mais: a voz do dono, ou o dono da voz? Por um lado somos forçados a pensar que "se ele é dono" ele pode mais. No entanto, sem a voz, o que o dono pode?
A canção desliza, ora dando voz ao dono - que só pode falar através da (sua) voz -, ora à própria voz - que quer se rebelar (ateia), mas acaba morando com (n)outro algoz. Este destino fatalista (a redundância faz-se necessária) da voz parece ser o mote absoluto, portanto.
Cida Moreyra, no disco Cida Moreyra canta Chico Buarque (1993), com a lucidez musical que lhe é própria, dá voz a esta discussão, investindo nos bemóis (aquele acidente musical que altera uma nota musical abaixando-lhe um semitom), a fim de tencionar (guerra e paz) e iluminar a questão: criando a imagem acústica das tentativas (fracassadas) de rebelião da voz.
Ao final, a voz precisa do dono (sem ele, ela não seria prensada e não giraria para todos nós: ouvintes) e vice e versa (sem ela, ele não teria poder). Cabe ao casal, como a qualquer casal, "igual a nós", encontrar os melhores e felizes meios de convivência.
***
A voz do dono e o dono da voz
(Chico Buarque)
Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e de paz, contras e pós
Fizeram bodas de acetato - de fato
Assim como os nossos avós
O dono prensa a voz, a voz resulta um prato
Que gira para todos nós
O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deu ao dono os dentes, Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus só deu seu dó
Porém a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes
Enfim, a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar, queria ser um prato
Girar e se esquecer, veloz
Foi revelada na assembleia - ateia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel trocando de traqueia
E o dono foi perdendo a voz
E o dono foi perdendo a linha - que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém
(O que é bom para o dono é bom para a voz)
(Chico Buarque)
Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e de paz, contras e pós
Fizeram bodas de acetato - de fato
Assim como os nossos avós
O dono prensa a voz, a voz resulta um prato
Que gira para todos nós
O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deu ao dono os dentes, Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus só deu seu dó
Porém a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes
Enfim, a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar, queria ser um prato
Girar e se esquecer, veloz
Foi revelada na assembleia - ateia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel trocando de traqueia
E o dono foi perdendo a voz
E o dono foi perdendo a linha - que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém
(O que é bom para o dono é bom para a voz)
Um comentário:
Leonardo,
"Ninguém sabe ser Chico Buarque
Porque para ser Chico Buarque
É preciso saber não ser.
Nem mesmo Buarque é."
Abraço rouco,
Pedro Ramúcio.
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