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23 setembro 2010

266. O canto da cidade

Liv Sovik, no meticuloso e agudo livro Aqui ninguém é branco, usa algumas páginas para analisar a figura de Daniela Mercury (e sua tentativa de tencionar o swing da cor brasileira na voz), mas precisamente quando esta interpreta e dar voz a "O canto da cidade".
A canção, composta por Tote Gira e Daniela Mercury, gravada no disco também intitulado O canto da cidade (1992), segundo álbum da cantora, de fato, dá início ao fenômeno Mercury. A abertura impositiva - "a cor dessa cidade sou eu, o canto dessa cidade é meu" - dá o tom de um sujeito que tenta situar sua postura e posição na ordem da vida.
A professora Sovik investiga o "o uso social da canção". Ora, em um país com graves problemas de identidade como o nosso, uma canção cujo sujeito, de entrada, se autodefine como portador da voz e da cor, da cidade ("A cidade à qual se refere é Salvador, a Roma Negra"), merece atenção e análise criteriosa: quem é a voz que canta? E, através de quem a voz canta? Por exemplo.
"A música popular não só reitera o senso comum ou dá sinais dos tempos. É um ambiente do lúdico e da experimentação, em que se formula o que se sente, mas ainda não foi formulado", escreve Sovik. Para ela, o arrebatamento de público, e coro, que a canção alcançou diz muito de nossa cultura. Mas há uma contradição entre o discurso e seu intérprete.
Deixando um pouco de lado as questões mercadológicas e sociológicas que atravessam seu livro, podemos pensar que Liv Sovik entra, portanto, no complexo campo da pergunta: qual intérprete tem a autoridade para cantar determinada canção?
Ora, "o gueto não existe em uma cidade majoritariamente negra", aponta Sovik. O sujeito, deste modo, "na boca de uma branca baiana", perde força na sua intenção de se autoafirmar. Ou seja, Daniela Mercury teria autoridade para "ser" a voz e a cor de Salvador? Quais os motivos desta identificação?
O sujeito que anda a pé, "pela cidade bonita" (de uma beleza que ninguém explica: simplesmente é), entra em choque com a figura da intérprete? Para Sovik, Mercury "representa menos uma mediação da cultura negra por uma branca, do que a carnavalização da própria mediação".
Porém, penso, se aqui ninguém é branco, onde está o problema da travestilidade de Daniela Mercury: da fantasia e da máscara usadas pela cantora? A professora deixa a entender que está na falta da contrapartida do rendimento da produção cultural. E voltamos à questão do mercado.
Seja como for: qual significado (sentido) teria "O canto da cidade", caso fosse interpretada por outro artista: negro? Certamente, a recepção seria outra. Livre do gueto(?), visto imerso, a voz ecoaria diferente: como? Eis aqui a intrínseca ligação entre texto e ator: canto e seu cantor: a produção de sentidos.

***

O canto da cidade
(Tote Gira / Daniela Mercury)

A cor dessa cidade sou eu
O canto dessa cidade é meu

O gueto, a rua, a fé
Eu vou andando a pé
Pela cidade bonita
O toque do afoxé
E a força, de onde vem?
Ninguém explica
Ela é bonita

Uôô, verdadeiro amor
Uôô, você vai onde eu vou

Não diga que não me quer
Não diga que não quer mais
Eu sou o silêncio da noite
O sol da manhã

Mil voltas o mundo tem
Mas tem um ponto final
Eu sou o primeiro que canta
Eu sou o carnaval

Um comentário:

Anônimo disse...

Uma das letras mais poéticas do fenômeno Daniela Mercury.
Ao afirmar que a cor e o canto da cidade (no caso, Salvador) são seus, a intérprete acaba apresentando a cultura baiana para o Brasil afora.
Depois da introdução, os versos que seguem enaltecem a beleza da cidade, terra do gueto e do afoxé (o candomblé de rua carnavalesco).
A postura impositiva segue novamente nos outros versos, como em “uôô, você vai onde eu vou", e ainda em “eu sou o silêncio da noite, o sol da manhã”.
Nos versos finais, "eu sou o primeiro que canta, eu sou o carnaval", Daniela personifica a cultura baiana, e (como a própria disse no Festival de Verão de 2008) parece querer fincá-la, efetivamente, no cenário musical brasileiro.