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24 agosto 2010

236. Maresia

Seres dependentes do canto (reconhecimento) alheio, somos sustentados (consolados) por aquilo que o outro diz de nós: muito embora, por vezes, não nos reconheçamos em alguns cantos. O fato é que, do sentimento-de-si (a luta pela sobrevivência na natureza) à consciência-de-si (a luta por valores intrínsecos ao humano), há um longo percurso: atravessado pelo outro.
Deste modo, ser amado (cantado) é ter nossa identidade segurada (colada) na voz do outro. Assim, quando somos abandonados (quando o outro vai embora), como no caso do sujeito da canção "Maresia", de Antônio Cícero e Paulo Machado", ficamos sem chão e sem teto: "Não sei mais bem onde estou / Nem onde a realidade".
Estamos onde o canto do outro nos coloca: eis a nossa realidade. O real é uma ficção (sempre) montada pela voz/olhar do outro. Desejando o desejo do outro (que nos deseja) somos e estamos no mundo. Sem isso, onde estamos?
O sujeito da canção, em uma tentativa de driblar sua realidade de abandono, canta o desejo de ser marinheiro: aquele que, inebriado (com a identidade borrada) pela maresia, navega sendo muitos (um amor em cada porto), sem deixar de ser ele mesmo.
Para o sujeito, fragmentar-se (amar e desamar sobre a base movediça - líquida - do mar) lhe preservaria da dor de ter o coração partido; "ou se partisse colava, com cola de maresia", sem grandes grilos (peso) e com poesia (verdade estética: a única verdade possível).
O sujeito vê na fragilidade das relações (bolha de sabão no ar) da era da mobilidade e das linguagens líquidas a saída para o mal do amor (algo) romântico: dependente, possuidor. Na verdade, se aprofundarmos um pouco mais nossa leitura, podemos mesmo ouvir o canto do indivíduo contemporâneo: que cria para si uma nova realidade (identidade) a cada clique na internet.
Navegar na internet, como no mundo "real" (se é que há alguma distinção entre um e outro), é construir identidades (desdobramentos de si - esferas) na permanente tentativa de se proteger da crueldade que é viver: navegar infeliz pela necessidade de reconhecimento.
A moldura melódica alegre de "Maresia", dada por Adriana Calcanhotto (Público, 2000), a princípio parece contrastar com o estado interior do sujeito. Porém, basta mergulhar na densa neblina para entender que o sujeito, de fato, investe na vontade de ser ("ah, se eu fosse"), e não em como ele está.
A imagem do marinheiro (daquele indivíduo eternamente em movimento e, portanto, sem apegos) surge como a certeza da negação do outro (que subjuga o sujeito e vai embora) e a vontade de viver, depois do abandono.

***

Maresia
(Antonio Cicero / Paulo Machado)

O meu amor me deixou
Levou minha identidade
Não sei mais bem onde estou
Nem onde a realidade

Ah, se eu fosse marinheiro
Era eu quem tinha partido
Mas meu coração ligeiro
Não se teria partido

Ou se partisse colava
Com cola de maresia
Eu amava e desamava
Sem peso e com poesia

Ah, se eu fosse marinheiro
Seria doce meu lar
Não só o Rio de Janeiro
A imensidão e o mar

Leste oeste norte e sul
Onde um homem se situa
Quando o sol sobre o azul
Ou quando no mar a lua

Não buscaria conforto nem juntaria dinheiro
Um amor em cada porto
Ah, se eu fosse marinheiro

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