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15 agosto 2010

227. Tô

Tom Zé só nos dá alegria: a nós, ouvintes de canção que, além da emoção cartática, buscamos emoção reflexiva. A obra de Tom Zé revitaliza sons, temas e signos que, comumente, passam desapercebidos pelo compositor em geral. Tom Zé encarna o Homo ludens, categoria absolutamente primária da vida, tão essencial quanto o raciocínio (Homo Sapiens) e a fabricação de objetos (Homo Faber). De fato, Tom Zé joga (brinca) com as três categorias, no exercício de composição.
No cancioneiro de Tom Zé, os astros todos dançam. Tropicalista, em lente luta, todos os olhos voltados para o pensamento, Tom é um inadaptado: não se adapta às imposições do contexto, está sempre no desvio. Movido pela inquietação, seus olhos revisam o passado para criar presentes (sonoros). Aliás, como ele próprio afirma: "Tudo só se acha no passado".
Assim é, também, o sujeito de "Tô", de Tom Zé e Elton Medeiros (Pirulito da ciência, 2010). Sempre se posicionando no avesso na situação colocada para si. Os versos vão surgindo como degraus que montam uma cadeia de significantes que resultam na postura (verbo no presente) "tô".
A letra estimula uma sensação de entorpecimento dos sentidos auditivos (explicando para confundir), haja vista a profusão de inversões de sentido que ela expressa, quebrando com a expectativa do ouvinte. Um exemplo: "Tô estudando pra saber ignorar". Em geral, estudamos para não ignorar, mas, irônico, o sujeito desconstrói tal assertiva erudita.
Os versos-obstáculos ora são ultrapassados, ora são desviados, mas o sujeito não deixa de estar. Deste modo ele finda por rascunhar um perfil do "ser", como que sugerindo: "gosto de ser e de estar", ou "sou onde estou".
A medodia acompanha os movimentos deste sujeito que é/está nas frestas (dobras): a mão bate no instrumento ao ritmo da entoação do sujeito. Deste modo, avanços e recuos ajudam a desenhar a dança da própria canção, já que a melodia confirma aquilo que a letra diz.
"Tô", portanto, é uma canção que se desdobra para dentro: investigando a si mesma, suas possibilidades de ir indo, voltar voltando e estar estando. O fato da canção (a voz que canta) dizer que está se "despedindo" também é outro indício do desdobrar-se para dentro. As notas que sobram, da divisão da voz e da música, são, por sua vez, também incorporadas à este sujeito-canção inadaptado, inquieto.
"Tô" é embate erótico-amoroso da canção consigo mesma; do sujeito consigo mesmo e um convite para que o ouvinte entre no jogo, suspenda o juízo e reveja suas certezas.

***


(Tom Zé / Elton Medeiros)

Tô bem debaixo pra poder subir
Tô bem de cima pra poder cair
Tô dividido pra poder sobrar
Desperdiçando pra poder faltar
Devagarinho pea poder caber
Bem de leve pra não perdoar
tô estudando pra saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar

Eu tô te explicando pra te confundir
Tô te confundindo pra te esclarecer
Tô iluminado pra poder cegar
Tô ficando cego pra poder guiar

Suavemente pra poder rasgar
Olho fechado pra te ver melhor
Com alegria pra poder chorar
Desesperado pra ter paciência
Carinhoso pra poder ferir
Lentamente pra não atrasar
Atrás da porta pra poder morrer
Eu tô me despedindo pra poder voltar

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