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18 novembro 2010

322. Amor mais que discreto

"Praticamos a pederastia, na maior alegria. Não temos desejo de filhos nem de casamento (...) prá nós basta ficar amantes amados, fora de qualquer casta, na delícia de ser pederasta", diz o andrógino masculino, durante a peça O banquete, dirigida por José Celso Martinez Corrêa.
O termo pederastia ( paîs = criança; e erân = amar), assim como a grande parte dos termos antigos e clássicos, traduzidos, já recebeu várias versões e ajustes. O livro O banquete, de Platão, que trata, a grosso modo, entre muitas outras coisas, do conceito de Eros (deus do amor), talvez seja o livro que melhor apresenta o tema da pederastia, apesar de todas as ressalvas platônicas.
Na pederastia, amante e amado tem objetivos definidos: entre eles, por parte do mais jovem (o amante), receber ensinamentos iniciáticos para a vida, para a maturidade (a compreensão da ação de Eros no interior do indivíduo), e quem sabe um dia se tornar o amado de um amante. Há, portanto, uma clara relação de submissão na relação.
Chamo O banquete, de Platão, aqui porque a canção "Amor mais que discreto", de Caetano Veloso, em muito se aproxima do discurso (cantada amorosa) que Alcibíades, fingidamente embriagado de vinho, lança a Sócrates. Apesar de, como tento mostrar adiante, o sujeito da canção dá um salto interpretativo à questão, mais perto da liberdade de O banquete de Zé Celso.
Guardada no disco Cê ao vivo (2007), "Amor mais que discreto" canta a contemplação de um amor que só entre homens pode ser vivenciado: a afeição espiritual de um adulto por um garoto: "eu sou um velho mas somos dois meninos, nossos destinos são mutuamente interessantes um instante, alguns instantes o grande espelho e aí a minha vida ia fazer mais sentido e a sua talvez mais que a minha", diz o sujeito da canção, em pleno êxtase que recupera a relação pederasta grega.
E atualiza, haja vista que, agora, quem canta, mesmo sendo o mais velho, quer ser "o amante do amante": quer ensinar e aprender: jogar com as trocas de papéis pedagógicos, algo pouco comum na Grécia, e só sugerido no final do livro, durante o discurso apaixonado de Alcibíades.
O sujeito de "Amor mais que discreto", por cantar um amor discretíssimo (platônico: "que é já uma alegria até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo, seu agora, seu antes, seu depois"), mescla as figuras referenciais de Alcibíades e Sócrates, a fim de, "não por falta de pudor, mas por coragem, virilidade e amor" (como canta o sexteto amados amantes glbts, da peça de Zé Celso), insinuar um amor que não se consome, apesar do desejo latente.
Afinal, como Alcibíades relata: “(...) quando me levantei com Sócrates, foi após um sono em nada mais extraordinário do que se eu tivesse dormido com meu pai ou um irmão mais velho”. O mais total interdito, como diz o sujeito de "Amor mais que discreto".

***

Amor mais que discreto
(Caetano Veloso)

Talvez haja entre nós o mais total interdito
Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer
Eu não cheguei a ser

Eu sou um velho
Mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes
O grande espelho
E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha,
Talvez bem mais que a minha
Os livros, filmes, filhos ganhariam colorido
Se um dia afinal
eu chegasse a ver que você vinha
E isso é tanto que pinta no meu canto
Mas pode dispensar a fantasia
O sonho em branco e preto
Amor mais que discreto
Que é já uma alegria
Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo
O seu agora, seu antes, seu depois
Sem ser remotamente
Se quer imaginado
Se quer imaginado
Se quer
Por qualquer de nós dois

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