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30 novembro 2010

334. Grávida

"Grávida", de Marina Lima e Arnaldo Antunes, guardada no disco Marina Lima (1991), é uma canção que liga o homem romântico, registrado pelo lirismo (presença recorrente e cortante do "eu") e a abstração. "Grávida" é mais sensação do que representação.
O sujeito brinca com o suposto desenho de si para plasmar um desenho surreal do humano. Ele suspende o conhecimento ordinário sobre a gravidez anexando em si os lugares desencarnados que as tecnologias nos oferecem.
Cheio de tudo, grávida do excesso tecnológico da vida contemporânea, o sujeito pari - no abrir e fechar dos dias - os resultados da combinação dos resíduos doados pelo macho fecundador (o progresso?) e o corpo orgânico do sujeito que canta sob o som de uma melodia sensual e envolvente.
Há uma justaposição de elementos naturais e artificiais apontando um objeto que é mais que humano: é pós. Combinados, os elementos não se esboroam, não se amalgamas e não se perdem de vista por completo, pois querem dizer de si enquanto engendram o canto do sujeito.
Pesado e leve (furacão e bolha de sabão) se equilibram a fim de tencionar o estado de saturação do sujeito enunciador. Seguindo esta linha de pressupostos, podemos ouvir um sujeito desencarnado, sem carne e cambiante: apontando para a multiplicidade de códigos que atravessam aquilo que hoje ainda chamamos de humano.
Cada imagem apresentada (cada elemento trazido à cena) aponta torres de Babel, babilônias, sodomas, gomorras e atlântidas que se montam e se desfazem dentro do sujeito. A disposição desordenada de materialidades é, no final, a causa do encantamento possível, diante das crias paridas desta harmonia dissonante que é o sujeito da canção.
A pele é curta para tamanhas descobertas, pois o sujeito não cabe mais em seu baú de ossos. Ele divide e une, capta e pulveriza. Aqui, a plasticidade evoca o humano perdido na profusão de significantes, mas dá vida a um novo humano.
Ele se dá à luz: ilumina a si mesmo; canta sua anatomia selvagem dos detalhes das sugestões exteriores que, de fato, lhe constituem. O ato sexual ausente dispara: o sujeito se multiplica para sentir a vida se fazendo vida dentro dele?
Seu corpo docilizado está a serviço de sentir tudo de todas as maneiras. E ele distingue no meio da beleza da gravidez os sonhos intranquilos que lhe fazem estar grávida de palavras. É pela ausência delas, ou pela inexistência das palavras certas para cada sentimento, que o sujeito pensa e canta.


***

Grávida
(Marina Lima / Arnaldo Antunes)

Eu tô grávida
Grávida de um beija-flor
Grávida de terra
De um liquidificador
E vou parir
Um terremoto, uma bomba, uma cor
Uma locomotiva a vapor
Um corredor

Eu tô grávida
Esperando um avião
Cada vez mais grávida
Estou grávida de chão
E vou parir
Sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o sol dilatar
Dar à luz

Eu tô grávida
De uma nota musical
De um automóvel
De uma árvore de Natal
E vou parir
Uma montanha, um cordão umbilical, um anticoncepcional
Um cartão postal

Eu tô grávida
Esperando um furacão, um fio de cabelo, uma bolha de sabão
E vou parir
Sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o sol dilatar
Vou dar a luz

333. Tempos modernos

Para Bruno Lima

Em Tempos modernos, filme de 1936 de Charles Chaplin, o protagonista vivido pelo próprio diretor faz paródia e faz pastiche tentando sobreviver em meio às perspectivas impostas pela industrialização. A mensagem social é clara e vem emoldurada pelo humor lúcido: o humano estaria perdendo espaço para as máquinas, os tais cérebros eletrônicos que, como Gilberto Gil cantou: não "dá socorro no meu caminho inevitável para a morte".
Obviamente, no filme os computadores ainda não assustavam tanto, mas já se insinuavam como signos de uma era pós-humana, na feliz expressão defendida por Lucia Santaella, em especial no livro Culturas e artes do pós-humano.
Na canção "Tempos modernos", de Lulu Santos, temos um sujeito que diante do colapso nervoso contextual forja a esperança de dias melhores no futuro. A personagem do filme e o sujeito da canção dialogam: é preciso encontrar meios de sobreviver à modernidade.
Relacionada ao desenvolvimento do Capitalismo, a modernidade é vista por melhorar a vida material, mas, sem dúvidas, por esquecer de melhorar o homem. O excesso de bens não supre as necessidades do existir: da alma, como dizem alguns.
Intoxicamo-nos de civilização e perdemos o apetite de sermos uma "gente fina elegante e sincera". O investimento insano no afastamento ou na eliminação da morte não sacia a vida: "hipocrisia que insiste em nos rodear".
Em Modernidade líquida, Zygmunt Bauman investiga o tempo que "voa e escorre pelas mãos, mesmo sem se sentir". Para o autor, hoje tudo é leve e volátil. As relações humanas, amor, são assujeitadas à inconstância e a instabilidade. E não há a previsão de modos mais estáveis futuros.
No disco Barulinho bom (1996), depois de sintomaticamente cantar "Cérebro eletrônico", Marisa Monte canta "Tempos modernos" com uma pegada mais lenta, mais contemplativa do que a versão do compositor da canção. A interpretação de Marisa investe no que vai de dentro para fora: no futuro que já é presente quando se pensa nele. "Me olha o que eu olho. É minha criação isto que vejo", diz um poema de Octávio Paz, com tradução de Haroldo de Campos.
O sujeito cambiante canta o aproveitamento do momento, já que o futuro é incerto, ou melhor, nem existe. Assim sendo, em "Tempos modernos", o que seria um canto convite de fé resulta na eloquência da desesperança de um sujeito que luta para afetar e ser afetado, em carne viva, pela vida: "Vamos viver tudo que há pra viver. Vamos nos permitir".

***

Tempos modernos
(Lulu Santos)

Eu vejo a vida
Melhor no futuro
Eu vejo isso
Por cima de um muro
De hipocrisia
Que insiste
Em nos rodear

Eu vejo a vida
Mais clara e farta
Repleta de toda
Satisfação
Que se tem direito
Do firmamento ao chão

Eu quero crer
No amor numa boa
Que isso valha
Pra qualquer pessoa
Que realizar, a força
Que tem uma paixão

Eu vejo um novo
Começo de era
De gente fina
Elegante e sincera
Com habilidade
Pra dizer mais sim
Do que não

Hoje o tempo voa amor
Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentir
E não há tempo
Que volte amor
Vamos viver tudo
Que há pra viver
Vamos nos permitir

332. Serenata

O acontecimento de uma serenata é carregado de imagens românticas: do indivíduo que canta no sereno acompanhado de parceiros sob a janela da amada até o banho de água fria, literalmente, jogado pelo pai da moça. Seresteiro que se preze precisava termina sua performance molhado sob o sereno da madrugada.
As juras de amor vinham carregadas de muito sofrimento, certo ressentimento e algum recalcamento. Afinal, a filosofia da seresta era rimar amor e dor: fazer as fibras do coração pungente fumegar de emoções. Os possíveis suspiros da musa do destempero só agravava isso.
Da modinha de salão às ruas, quando o gênero foi denominado, a seresta (prima-irmã da serenata) embalou corações apaixonados. Sem dúvidas, o nosso cancioneiro popular (até hoje, basta ver a enorme quantidade de canções que tematizam o desamor) bebeu bastante nesta verve cancional.
Nestas canções há uma áurea de amor puro e terno, ainda não afetado pelas "mudernidades", e que se refere a um tempo em que a vida parecia passar mais devagar, facilitando os acontecimentos amorosos e revirando os desejos dos amantes.
O sujeito de tais canções canta a solidão existencial: a terrível impossibilidade de fazer o outro sentir o que eu sinto. A solidão é relatada sob pontuações que indiciam as angústias do indivíduo. É neste contexto interior que surge a voz do abandono: resposta à incompreensão e ao fato de ser preterido. Estar só é está com sua realidade: eis o que canta o sujeito.
Sílvio Caldas gravou o disco Serenata (1957) reunindo canções que carregam nas tintas do amor desprezado e/ou impossibilitado pelas mais diversas questões. Seresteiro, o caboclinho querido deu voz a sujeitos que não tinham vergonha, muito ao contrário, de contar o fel e o sangue de amor.
Tal canto é construído depois que passa pelo crivo daquilo que resulta da expectativa frustrada, ou, muitas vezes, pelo simples e complexo sentir e não poder consumar o desejo, já que, em tais canções, o desejo parece querer se impor a qualquer racionalidade.
O sujeito da canção "Serenata", de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, condensa naquilo que diz (canta) os signos do seresteiro sugeridos acima. E encontra na voz de Sílvio a bela agonia daquilo que sente e diz que sente: "Na serpente de seda dos teus braços alguém dorme ditoso sem saber que eu vivo a padecer e o meu coração feito em pedaços vai sorrindo ao teu amor, mascarado desta dor", diz.

***

Serenata
(Silvio Caldas / Orestes Barbosa)

Dorme, fecha esse olhar entardecente
Não me escute, nostálgico, a cantar
Pois não sei se feliz ou infelizmente
Não me é dado, beijando, te acordar

Dorme, deixa os meus cantos delirantes
Dorme, que eu olho o céu a contemplar
A lua que procura diamantes
Para o seu lindo sonho ornamentar

Na serpente de seda dos teus braços
Alguém dorme ditoso sem saber
Que eu vivo a padecer
E o meu coração feito em pedaços
Vai sorrindo ao teu amor
Mascarado desta dor

No teu quarto de sonho e de perfume
Onde vive, a sorrir, teu coração
Que é teatro da ilusão
Dorme, junto aos teus pés, o meu ciúme
Enjeitado e faminto como um cão

27 novembro 2010

331. Odeon

É Nara quem conta a história dessa canção no encarte do álbum Nara Leão (1968): "Em 1908, Ernesto Nazareth foi contratado para animar a sala de espera do cinema Odeon. Muita gente comprava ingresso para o filme, mas passava a tarde ouvindo o seu piano.(...) Em 1968, a meu pedido, Vinicius de Moraes fez a letra do chorinho que Nazareth chamou de 'Odeon'".
Ernesto Nazareth foi uma das figuras mais importantes da música popular no século XIX. Suas composições atravessam épocas e continuam instigando pesquisadores e amantes. Conforme Jairo Severiano registra no livro Uma história da música popular brasileira, Nazareth "captou o esquema rítmico-melódico criado pelos chorões e o levou para o piano, estilizando-o de forma magistral. E como era grande compositor, enriqueceu-o com belas melodias. Uma característica peculiar de sua obra é a localização na fronteira do popular com o erudito".
Vinícius de Moraes deu às letras de canção popular o frescor poético que a Bossa Nova exigia: seja a linguagem solar e coloquial (com expressões facilmente identificadas na fala, principalmente, carioca: com suas gírias e afetações), seja no uso do diminutivo doce ("O meu chorinho", por exemplo). No entanto, é preciso atentar para a distinção entre o Vinícius poeta e o Vinícius cancionista. O poetinha percebia os apelos de cada linguagem: da palavra escrita (feita para o papel) à palavra cantada (que se equilibra com uma melodia).
A canção "Odeon", de Ernesto Nazareth e Vinícius de Moraes, é exemplo da verve lírica do poetinha. Muitos anos depois da música ter sido feita, o poetinha aceita o desafio e encontra as palavras exatas para se encaixar no ritmo preexistente. Faz isso compondo uma metacanção, pois o sujeito da "Odeon" de 1968 recorre à sua infância, quando ouvia a "Odeon" de 1908.
Assim, sobrepondo épocas e eliminando as categorias estanques de tempo e de espaço já que, quando canta, o sujeito recupera o passado "tanto tempo abandonado" e ilumina o presente, "Odeon" é canção que esmiúça sua própria feitura: agrega lembranças "de um passado que era lindo, era triste, era bom" ao canto de agora: de um sujeito maduro que através do chorinho que compõe ("Ai quem me dera") se reconecta à criança perdida dentro do adulto.
Chorinho-de-rítmo e chorinho-de-lágrimas se misturam na tentativa de reconstruir um lugar esquecido na memória, um lugar que volta a ser projetado na visão do sujeito enquanto ele canta "esse bordão que me dá vida que me mata". Afinal, cantar é ter o coração daquilo.
"Odeon" é ainda metacanção quando mostra os detalhes (significantes) do choro-canção: instrumentos (flautas, cavaquinho...) e gestos (devagarzinho meia-luz, meia-voz, meio tom). A ação de acelerar e desacelerar o andamento da canção fica por conta da melodia de Nazareth, mas encontra como companhia perfeita as palavras (ora breves, ora longa), de Vinícius.
O tempo passou, muita coisa mudou e eis que surge um chorinho, mostrando a graça (ampliada pela voz doce de Nara Leão) que um choro sentido tem. A beleza do momento é tão intensa para o sujeito da canção que ele mesmo não consegue acreditar: "Quem diria que um dia, chorinho meu, você viria", diz. Não é para menos, afinal o sujeito queria transformar a poesia em realidade e consegue, quando restitui a si à glória de ser criança: de reverter o tempo e se recolher na vida antiga, amiga, ilusória e, porque ninguém hoje sabe mais, saudosa.

***
Odeon
(Ernesto Nazareth / Vinícius de Moraes)

Ai, quem me dera
O meu chorinho
Tanto tempo abandonado
E a melancolia que eu sentia
Quando ouvia
Ele fazer tanto chorar
Ai, nem me lembro
Há tanto, tanto
Todo o encanto
De um passado
Que era lindo
Era triste, era bom
Igualzinho a um chorinho
Chamado Odeon

Terçando flauta e cavaquinho
Meu chorinho se desata
Tira da canção do violão
Esse bordão
Que me dá vida
Que me mata
É só carinho
O meu chorinho
Quando pega e chega
Assim devagarzinho
Meia-luz, meia-voz, meio tom
Meu chorinho chamado Odeon

Ah, vem depressa
Chorinho querido, vem
Mostrar a graça
Que o choro sentido tem
Quanto tempo passou
Quanta coisa mudou
Já ninguém chora mais por ninguém

Ah, quem diria que um dia
Chorinho meu, você viria

Com a graça que o amor lhe deu
Pra dizer "não faz mal
Tanto faz, tanto fez
Eu voltei pra chorar com vocês"

Chora bastante meu chorinho
Teu chorinho de saudade
Diz ao bandolim pra não tocar
Tão lindo assim
Porque parece até maldade
Ai, meu chorinho
Eu só queria
Transformar em realidade
A poesia
Ai, que lindo, ai, que triste, ai, que bom
De um chorinho chamado Odeon

Chorinho antigo, chorinho amigo
Eu até hoje ainda percebo essa ilusão
Essa saudade que vai comigo
E até parece aquela prece
Que sai só do coração
Se eu pudesse recordar
E ser criança
Se eu pudesse renovar
Minha esperança
Se eu pudesse me lembrar
Como se dança
Esse chorinho
Que hoje em dia
Ninguém sabe mais

26 novembro 2010

330. Resistiré

Por aqui, a canção é a América Latina em espelho. A história da canção nos mostra que sempre se orientou pelo resgate do conflito humano. E a profusão de temas românticos também é sintoma disso: de uma busca alucinada por identidades. Cantar é resistir à precariedade e à exuberância.
Resistir não no sentido de negar ou evitar, mas nas melhores definições do termo: não ceder, durar e conservar-se. Gesto comum e cotidiano na América Latina, na América que não escreve romance, escreve conto; não faz história, faz ensaio: inventa uma tradição e forja um passado.
Portanto, se todas as vezes que eu me confesso eu me inscrevo ficcionalmente, já que falar de mim exige certo anseio ficcional, o sujeito da canção "Resistiré", de Carlos Toro e Manuel de La Calva, é símbolo do indivíduo latino-americano.
Sucesso na interpretação ímpar do Dúo Dinámico, ancorada na esteira temática da não menos famosa "I will survive", "Resistiré" é daquelas canções que poderiam ter sido compostas por um brasileiro. Não foi, mas diz muito de nossa cultura e de nosso povo.
Em atitude iluminada e luminosa, Adriana Calcanhotto interpretou "Resistiré" para o programa Continuarà da TVE e Catalunya, em novembro de 2007. O vídeo pode ser facilmente encontrado no youtube. Voz e violão, meio bossa nova meio pop, Adriana tomou a canção para si e imprimiu a tropicalidade brasileira devida.
A cantora faz um diálogo amoroso com as canções de língua espanhola, tendo "Resistiré" como grande coroa. Só para anotar, basta andar pelas lojas de discos de Buenos Aires para perceber o quanto nossos hermanos consomem nossa canção, mas a recíproca não é verdadeira. Ao cantar "Resistiré", gesto simples, Adriana complexifica a questão.
Resistir é sair do campo de classificação. Eis o que o sujeito da canção deixa minar. Resistir é seguir cantando: preenchendo as lacunas que a vida ordinária não dá conta; é mover-se; é brincar com a memória (dispositivo falido de sustentação da identidade); é seguir "erguido frente a todo", mas com a flexibilidade do bambú.
Cantar é resistir; é deixar o corpo (individual e coletivo: nações) ficar odara. Cantar é dizer que sobrevivemos porque não podemos explicar-nos. Cantar e resistir é ser latino-americano, ou seja, é perspectivizar e equacionar a tomada de consciência social pela via da alegria.
Por tudo isso, "Resistiré", que encontrou novos ouvidos depois que ajudou a compor a trilha do filme Ata-me, de Pedro Almodóvar, na gravação original dos anos 1960 do Dúo Dionámico, é tradução da América Latina e de seu povo desassossegado, inquieto, que canta e é feliz criando artifícios para cantar.

***

Resistiré
(Carlos Toro / Manuel de La Calva)

Cuando pierda todas las partidas
Cuando duerma con la soledad
Cuando se me cierren las salidas
Y la noche no me deje en paz

Cuando sienta miedo del silencio
Cuando cueste mantenerse en pie
Cuando se rebelen los recuerdos
Y me pongan contra la pared

Resistiré, erguido frente a todo
Me volveré de hierro para endurecer la piel
Y aunque los vientos de la vida soplen fuerte

Soy como el junco que se dobla,
Pero siempre sigue en pie
Resistiré, para seguir viviendo
Soportaré los golpes y jamás me rendiré
Y aunque los sueños se me rompan en pedazos

Resistiré, resistiré

Cuando el mundo pierda toda magia
Cuando mi enemigo sea yo
Cuando me apuñale la nostalgia
Y no reconozca ni mi voz

Cuando me amenace la locura
Cuando en mi moneda salga cruz
Cuando el diablo pase la factura
O si alguna vez me faltas tu.

Resistiré, erguido frente a todo
Me volveré de hierro para endurecer la piel
Y aunque los vientos de la vida soplen fuerte
soy como el junco que se dobla
pero siempre sigue en pié.

Resistiré, para seguir viviendo
Soportaré los golpes y jamas me rendiré
Y aunque los sueños se me rompan en pedazos

Resistiré, Resistiré

25 novembro 2010

329. Tantinho

O comovente sermão anônimo O amor de Madalena, encontrado por Rainer Maria Rilke, começa dizendo que "Madalena, a santa amante de Jesus, amou-o em três estados. Amou-o vivo, amou-o morto, amou-o ressuscitado"; e termina observando que "Ela gosta mais de suas [do amor] privações do que de seus próprios dons e de seus favores". Madalena se alimenta de suspiros, de interditos, de pulsão e aniquilamento cíclicos.
Assim, penso, é o investimento da poesia: sempre fracassado e sempre gozoso, na tentativa de tocar o real, de desinstalar a vida. E assim também é o amor: nunca se completa (graças a deus!); tudo dá e nada pede. Claro que há um toque de ímpeto romântico aqui, mas ainda é preciso acreditar, penso, no amor.
Uma boa (e eficiente) obra de arte deve levar o fruidor a fazer conexões com outras obras e a ativar conhecimentos que, diante da nova obra, são colocados em questão. Carlinhos Brown, com sua inquietação contagiante, promove tais movimentações naqueles atentos à sua canção. Há um investimento no amor (sem rosto, sem nome: tropical e universal) que comove.
O sujeito da canção "Tantinho", de Carlinhos Brown (Odobró, 2010), aponta para uma alegria que, mais do que uma sensação, é um lugar. Independente do sujeito, a alegria é um espaço e uma projeção: uma geografia só atingida em coma de amor. Ou seja, o canto da vida (a canção que o sujeito compõe criando a sensação, no ouvinte, de que ela está sendo feita naquele instante da audição) é possível quando o indivíduo sabe que além do bem e do mal só há o bem e o mal: nada além, de uma ilusão.
É essa canção que faz o tempo passar doendo com menor intensidade. Para tanto, ela desliga a razão, fica odara, deixa os olhos livres. Eis que surge a exuberância: a poesia chove e o sujeito canta em línguas, tomado pelo espírito santo do amor.
No fundo, o sujeito de "Tantinho" cria uma genealogia afetiva da própria existência-de-si. Ele se ensaia: ele é mais uma função ("pro tempo passar") do que algo em si. Diz ao que veio: "Fiz essa canção (...) como sou feliz e sei que estou". A metacanção (canção que se autoficcionaliza, se autorepresenta) cria aproximações necessárias tanto à persona do sujeito, quanto à amada cantada, que é, noutro plano de interpretação, a própria vida.

***

Tantinho
(Carlinhos Brown)

Decunde Odá
Odara, Odara
Thiriririri Yara
Oh oh yeah
Dá, Odara, Odara
Thiriririri Yara

Fiz essa canção em coma de amor
Como sou feliz e sei que estou
Nunca amei ninguém um tantinho assim
Sem gostar de quem gostar de mim

Fiz essa canção pro tempo passar
Como estou só quero te abraçar
Se é ilusão desligue a razão
Pra bater feliz meu coração

Agora que subi ladeira, sossego
Que a poesia em minha horta, choveu
Eu te quero aqui
Bem-vinda à minha vida linda, calor
Você é vitamina, guia e é show
Vem grudar em mim

Por isso então dá-me tua mão
Por isso então dá-me tu amor

(So much Love)
Por isso então dá-me tua mão
(So much Love)
Por isso então dá-me tu amor
(So much Love)
Por isso então dá-me tu amor

Como I love you
Como I need you
E o meu coração só quer lhe amar
Como I love you
Como I need you
E só quer saber de andar colado

24 novembro 2010

328. Doce sereia

"Doce sereia", de João Bosco e Francisco Bosco, é uma das mais belas declarações de amor àquele ser que canta a vida; situa o indivíduo no mundo; abre possibilidades de significação diante do absurdo da existência.
Lançada no disco Na esquina (2000), a canção, que já mereceu outro belo registro de Joyce e Quarteto Maogani (no Songbook de João Bosbo), oferece-nos um sujeito que tenciona o orgânico e o onírico: borra as fronteiras entre real (pele; tato; e voz) e ficcional (sonho; delírio; e voz). A voz como elo: ponte que vai de um para o outro. Seria uma sereia ou seria só delírio tropical?
A sereia deste sujeito é rainha do mar, mas também é dona da voz que canta, afinal é por ela que a voz vaza e pulsa. Moça bonita, ela é a força que nunca seca dentro dele. Ela arrasta o sujeito para os mergulhos necessários e urgentes ao (des)conhecido.
A sereia é a sem nome e sem rosto (mil (dis)fa(r)ces) a machucar os sentidos do sujeito. É quando ela brinca na areia (samba qual passista, cinturinha de pilão, na gira) que o desassossego atravessa o sujeito; é quando ele se mira: olha o espelho e vê ninguém. Mas é aí, perdido neste lugar sem antes nem depois, que ele se acha: vê a face luminosa do amor.
Os versos "Boca que beija sem os lábios. Teus olhos fechados olham pra mim" dão a dimensão da potência criativa do sujeito quando este investe na composição da materialidade de sua imaginação: a sereia é som e silêncio; luz e sombra.
O gesto de cantar a sereia (ser cantante) torna o sujeito, de viés, sereia da sereia e sereia de si. Ao dialogar (amorosamente) com ela, o sujeito traz a própria vida na voz. Estabelecendo esse diálogo o sujeito sustenta o canto dela: canto que é necessário à vida dele. "Vamos juntos nadar na maré cheia. Quem não morre no mar morre na areia", diz.
As personagens (qual passistas) bailam na avenida ao ritmo do enredo que o sujeito compõe e canta. Braços dados com a vida, ele percebe que o mundo é bem pequeno (só dos dois amantes) quando se prova do sal dos lábios da sereia que acende as constelações da paixão, de manhã.

***

Doce sereia
(João Bosco / Francisco Bosco)

Falo de ti
Dama que nunca se viu
Nunca o teu nome
Alguém já repetiu
Fada ou sereia
Em mil carnavais
Ela jamais
A mesma máscara vestiu

Falo de ti
Sempre passeias aqui
No calçadão
Da praia de Aparição
Deusa de areia
Quem nunca te viu
No branco mar
Que a tua imagem refletiu

Ô, beleza
Por que sambar assim?
Sem repetir nem
Um só passo
Sem chão
Num compasso sem tempo
Sem ter um fim

Ô, beleza
Por que te amar assim?
Boca que beija
Sem os lábios
Teus olhos fechados
Olham pra mim

Pra te encontrar
Quanto terei que andar
Quanto sofrer
Quanto saber
Que você não virá
Pra te deixar
A quem dizer adeus?
A minha voz
Repetirá os gritos meus

Quero te ouvir cantar
Doce sereia
Vou me deixar levar
Por amor

Vamos juntos nadar
Na maré cheia
Quem não morre no mar
Morre na areia

Vênus, Iemanjá
Que rosto esconderá
O véu dos nomes que tentam dizer
O que não se pode ver, não
Vamos viver nós dois
Sem antes nem depois
Pingos de chuva entre a nuvem e o chão
Esse é o nosso enredo

O que eu quero é sambar
Venha ser o meu par
Eu peguei tua mão
Pra nunca largar
Pra nunca largar

23 novembro 2010

Iolanda

A metacanção (canção que fala de si), vinda na esteira da metafísica, tem como procedimento básico tentar investigar além do sensível: fazer perguntas para as quais não há respostas prontas e simples. Ou seja, a metacanção quer ter acesso a algo em que só se chega através do discurso (da própria canção).
Sendo uma canção que fala sobre canção, a metacanção quer ter acesso a si; àquilo que está por trás e além do que é dito, cantado. Por isso, "esta canção é mais que uma canção, quem dera fosse uma declaração de amor", como diz o sujeito de "Iolanda", de Pablo Milanês, na versão de Chico Buarque.
Gravada por Simone no disco Amor e paixão (1986), "Iolanda" é uma declaração de amor às relações latino-americanas; é um ensaio amoroso sobre a usa (ideal e romantizada) que condensa em si as vozes e os cantos - o colo - para o sujeito híbrido e desterritorializado.
Iolanda simboliza o instante ficcional do sujeito que, descoberto, precisa do colo da sereia que lhe canta - suspende as certezas ordinárias. Sempre insuficiente, o canto precisa ser reouvido: "eternamente te amo".
Iolanda é uma paisagem geográfica movediça e ficcional - a mulher mais adorada: diante da qual o sujeito despe o juízo, evoca sensações contrárias (prazer e melancolia?) e comunga com a vida.
"Iolanda", a canção, duplica o enigma da Iolanda mulher-musa, pois quer resolver o enigma do outro (de quem se fala). Para tanto espalha significantes do próprio sujeito (espelho) que fala.
Essa circularidade da ilusão cria a verdade (estética e ficcional) do sujeito. O sujeito quer dizer de seu amor e diz: compõe uma canção que é mais que uma canção, é algo que quer ir além do que é dito; roça a pele de Iolanda ao roçar a própria pele de uma canção que contém a si mesma.

***

Iolanda
(Pablo Milanês - versão: Chico Buarque)

Esta canção
Não é mais que uma canção
Quem dera fosse uma declaração de amor
Romântica
Sem procurar a justa forma
Do que me vem de forma assim tão caudalosa

Te amo, te amo
Eternamente te amo

Se me faltares
Nem por isso eu morro
Se é pra morrer
Quero morrer contigo
Minha solidão
Se sente acompanhada
Por isso às vezes sei que necessito
Teu colo, teu colo
Eternamente teu colo

Quando te vi
Eu bem que estava certo
De quem me sentiria descoberto
A minha pele
Vais despindo aos poucos
Me abres o peito quando me acumulas
De amores de amores
Eternamente de amores

Se alguma vez
Me sinto derrotado
Eu abro mão do sol de cada dia
Rezando o credo
Que tu me ensinaste
Olho teu rosto e digo à ventania
Iolanda, Iolanda
Eternamente Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Eternamente Iolanda

22 novembro 2010

326. Pra que discutir com madame

"Nosso samba tem feitiço, tem farofa, tem vela e tem vintém e tem também guitarra de rock'n'roll, batuque de candomblé", diz o sujeito da canção "Feitiço", de Caetano Veloso.
O samba complexifica nossa mistura de raças; nossa hibridação; ilumina democracias. O problema é que nem todos aceitam isso. Afeitos à segmentação aos moldes norte americanos, indivíduos como a Madame da letra de "Pra que discutir com Madame", de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida, hostilizam nossa diversidade, em favor de uma cultura pura, inexistente por aqui.
Tais pessoas se assemelham ao público representado no filme Le Sang D'un Poète, de Jean Cocteau: um tipo de elite cheia-de-si e de distanciamentos; que exulta e aplaude apenas quando o poeta que sangra e agoniza na derradeira cena.
Seja como for, a tal madame da canção já foi identificada como sendo a crítica Magdala da Gama de Oliveira (a Mag), pelo modo que ela imprimia suas observações contra o samba então se alastrando e se firmando na cultura: signo e símbolo das culturas daqui.
Admitir isso, pensa a madame, seria afirmar (que vexame) nosso lado "atrasado" e "primitivo" : assumir histórias que precisam ser silenciadas; senão "a raça não melhora".
É interessante perceber que, de certo modo, com sua levada cool, João Gilberto (Eu sei que vou te amar, 1994) sofistica o samba a tal ponto que o ritmo passa a ser aceito por madames e afins.
Parece que ao perder sua corporeidade, sua dança de corpos moldados em barracos e botequins, o samba agrada. Mas essa é uma discussão complexa e longa.
Com sua origem africana e popular, o samba convida à mistura, algo impensável para alguns conservadores. O sujeito da canção aponta isso e pensa até em acabar com o samba. Pra que discutir com madame? É ela quem dá as cartas e as coordenadas de um mundo melhor, não cabe ao sambista ir contra isso.
Sendo assim, "No carnaval que vem também com o povo meu bloco de morro vai cantar ópera e na avenida entre mil apertos vocês vão ver gente cantando concerto".

***

Pra que discutir com Madame
(Haroldo Barbosa)

Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora
Por causa do samba
Madame diz que o samba tem pecado
Que o samba é coitado
Devia acabar
Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de dor
Madame diz que o samba é democrata
É música barata
Sem nenhum valor

Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que o samba é vexame
Pra que discutir com Madame

No carnaval que vem também com o povo
Meu bloco de morro vai cantar ópera
E na avenida entre mil apertos
Vocês vão ver gente cantando concerto
Madame tem um parafuso a menos
Só fala veneno
Meu Deus que horror
O samba brasileiro, democrata
Brasileiro na batata é que tem valor

21 novembro 2010

325. Azulão

Como falar de um país que, apesar do progresso vazio e da nesga de intolerância, é de todas as raças, sexos, culturas e credos? Como dar conta de contar o Brasil? Eis a tarefa difícil e estimulante que Inezita Barroso tomou para si ao gravar um disco chamado Vamos falar de Brasil em 1958.
Aliás, falando em tolerância, em tempos de perseguições fundamentalistas, lembro-me das palavras de José Saramago: "Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é muito pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas, da qual estivessem excluídas a tolerância e a intolerância."
Voltando a Inezita. A intenção da cantora era abrir o leque da pluralidade cultural brasileira, mirando nas culturas rurais, interioranas, não urbanas, tão negadas pelas mídias de massa. Cabe apontar que estamos falando de um período pré canção de protesto, mas já consciente e crítica. Faço aqui uso da expressão "canção crítica" tal e qual Santuza Cambraia Naves defende no livro Canção Popular no Brasil.
Inezita quis com esse disco, o que aliás é um gesto típico desta artista, tirar a pecha de exótico que cobre as belezas da nossa diversidade cultural: afirmar tais belezas e iluminá-las sem vergonha, muito pelo contrário, com felicidade.
Entre as doze canções do disco, destacamos a melancólica "Azulão", de Jayme Ovale e Manuel Bandeira. Nela o sujeito consciente-de-si (do nada existência que somos fora do conto alheio) roga ao pássaro que leve à amada ingrata a mensagem de tristeza e abandono.
"Somos contos contando contos, nada", diz Ricardo Reis em um de seus poemas - "Resumo. O sujeito da canção pede ao azulão (pássaro que canta para aliviar a dor) que conte à ingrata sobre o nada (o sertão que não é mais o mesmo) instalada.
Contar o outro é cantar, é dar-lhe sentido existencial, é pô-lo no mundo, situá-lo. Através do canto do azulão, o sujeito quer, reconquistando a amada que partiu, restituir-se à vida.

***

Azulão
(Jayme Ovale / Manuel Bandeira)

Azulão, azulão companheiro, vai
Vai ver minha ingrata
Diz que sem ela o sertão não é mais sertão
Ah! Voa azulão
Vai contar companheiro
Vai azulão, azulão...

20 novembro 2010

324. Mensagem de amor

"Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não". Estas palavras de um confuso Riobaldo sintetizam o querer mais que bem querer.
Quando apaixonados, todas as explicações, teóricas e filosóficas, perdem qualquer importância ordinária: entramos no campo do extraordinário (do sertão: "onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar"); das mensagens de amor trazidas no ar; do olhar alheio que nos dá força e vida.
Basta estar junto e "nada me move nem me faz parar": suspendem-se as certezas e as dúvidas: viver até que faz sentido. E só resta cantar ao amor; dizer das abstrações deste estado-de-si espalhando, no ar, uma mensagem de amor. Do sertão que está em toda parte; que não se limita com nada.
E é isso o que faz o sujeito da canção "Mensagem de amor", de Herbert Vianna: tenta encontrar o outro (mante-lo próximo), para assim se situar no mundo, através do canto. Ele que não tem mais nada a oferecer, além do amor que sente, canta: entra em delírio.
"O amor? Pássaro que põe ovos de ferro", diz Riobaldo. Ou seja, a cria (aquilo que é gerado por tal pássaro) nunca sai da casca, porque é de ferro, fica eternamente dentro, dando voltas no fracasso da expressão. Cabe ao pássaro sofrer seu gesto doloroso e inútil.
Gravada por Léo Jaime no disco Vida difícil (1986), "Mensagem de amor" tematiza o esforço sem eco nos livros da estante de um sujeito in love. A melodia pop romântica cria a atmosfera de desamparo em que o sujeito está inserido. E nada se resolve ou se define: "a não ser a vontade de te encontrar, o motivo eu já nem sei". E quem sabe?

***

Mensagem de amor
(Herbert Vianna)

Os livros na estante já não têm mais tanta importância
Do muito que eu li, do pouco que sei
Nada me resta

A não ser a vontade de te encontrar
O motivo eu já nem sei
Nem que seja só para estar ao seu lado
Só pra ler no seu rosto
Uma mensagem de amor

À noite eu me deito,
Então escuto a mensagem no ar
Tambores rufando
Eu já não tenho nada pra te dar

No céu estrelado eu me perco
Com os pés na terra
Vagando entre os astros
Nada me move nem me faz parar

A não ser a vontade de te encontrar
O motivo eu já nem sei
Nem que seja só para estar ao seu lado
Só pra ler no seu rosto
Uma mensagem de amor

19 novembro 2010

323. Pra você eu digo sim

As canções de Rita Lee são daqueles tipos de peças que imprimem (no ouvinte) a beleza de viver pelo simples sabor do gesto de viver: com muito auto bom humor e autoironia.
A propósito, importa destacar a biografia alucinada da rainha do rock: Rita Lee mora ao lado, escrita com competência e paixão por Henrique Bartsch, em que se sugerem as personas que bailam sob o (des)controle da lúdica sereia Rita Lee. A biografia é tão cheia de significantes quanto a biografada.
Em Aqui, ali, em qualquer lugar (2001), Rita Lee recupera sua paixonite pelos Beatles: refrigera com bons ares de juventude uma obra, por si, jovial: afirmativa e alegre, no sentido que não nega a dor e a melancolia.
Temos o privilégio de ouvir como a menina que cantou "Canção para inglês ver" traduz e transcria (voz, letras e melodias) as canções britânicas (e universais).
A liberdade tropical e oswaldiana com que Rita ouve e lê as canções imprime a certeza de seu diálogo amoroso com os ídolos do início de sua caminhada no mundo das canções; ao mesmo tempo em que apresenta-os, renovados e destronados (sem a pecha de seres intocáveis), aos ouvintes de hoje. Isso, de viés, amplia o sabor das canções: oferece novas cores.
Desde o suspiro inicial até o sim final da canção "Pra você eu digo sim", versão de Rita Lee para "If I fell", de John Lennon e Paul McCartney, há uma luxúria toda humana e feminina: de uma mulher que responde ao sujeito machista da canção "Minha namorada" que: "Se você quiser ser meu namoradinho e me der o seu carinho sem ter fim, pra você eu digo sim".
Ou seja, deixando suspendida a resposta para a pergunta freudiana - "afinal, o que querem as mulheres?" - o sujeito feminino da canção impõe seus desejos, revelando suas incertezas. E é este jogo entre inseguranças e vontades que faz a graça da canção: revela a mulher que canta seu homem, sem dizer que sim, nem que não: preservando o "se" e seduzindo quem ouve seu canto de sereia manhosa.
No fundo, ela não quer repetir velhos erros: uma vez ela se apaixonou e não foi como ela pensou. Daí os receios e as regras que ela deixa minar. Mulher esperta, ela não quer ser nem fácil, nem defensiva: quer apenas fazer valer um mundo só dos dois, afinal o mundo não precisa de mais ninguém, depois da entrega total.
Ele, o outro, o pretenso namoradinho, é a motivação para o canto; por isso, se ele cumprir sua parte no jogo - dar abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim -, ela diz sim: afirma a vida junto dele, aqui, ali, em qualquer lugar.

***

Pra você eu digo sim (If I fell)
(John Lennon / Paul McCartney - versão Rita Lee)

Se eu me apaixonar
Vê se não vai debochar
Da minha confusão
Uma vez me apaixonei
E não foi o que pensei
Estou só desde então

Se eu me entregar total
Meu medo é
Você pensar que eu
Sou superficial

Se eu não fizer
Amor assim sem mais
Se você brigar
E for
Correndo atrás de alguém
Não vou suportar
A dor de ver
Que eu perdi
Mais uma vez meu amor

Mas se eu sentir
Que nós estamos juntos
Longe ou a sós
No mundo e além
Pode crer que tudo bem
O amor só precisa de nós dois
Mais ninguém

Se você quiser
Ser meu namoradinho
E me der o seu carinho
Sem ter fim
Prá você eu digo sim

18 novembro 2010

322. Amor mais que discreto

"Praticamos a pederastia, na maior alegria. Não temos desejo de filhos nem de casamento (...) prá nós basta ficar amantes amados, fora de qualquer casta, na delícia de ser pederasta", diz o andrógino masculino, durante a peça O banquete, dirigida por José Celso Martinez Corrêa.
O termo pederastia ( paîs = criança; e erân = amar), assim como a grande parte dos termos antigos e clássicos, traduzidos, já recebeu várias versões e ajustes. O livro O banquete, de Platão, que trata, a grosso modo, entre muitas outras coisas, do conceito de Eros (deus do amor), talvez seja o livro que melhor apresenta o tema da pederastia, apesar de todas as ressalvas platônicas.
Na pederastia, amante e amado tem objetivos definidos: entre eles, por parte do mais jovem (o amante), receber ensinamentos iniciáticos para a vida, para a maturidade (a compreensão da ação de Eros no interior do indivíduo), e quem sabe um dia se tornar o amado de um amante. Há, portanto, uma clara relação de submissão na relação.
Chamo O banquete, de Platão, aqui porque a canção "Amor mais que discreto", de Caetano Veloso, em muito se aproxima do discurso (cantada amorosa) que Alcibíades, fingidamente embriagado de vinho, lança a Sócrates. Apesar de, como tento mostrar adiante, o sujeito da canção dá um salto interpretativo à questão, mais perto da liberdade de O banquete de Zé Celso.
Guardada no disco Cê ao vivo (2007), "Amor mais que discreto" canta a contemplação de um amor que só entre homens pode ser vivenciado: a afeição espiritual de um adulto por um garoto: "eu sou um velho mas somos dois meninos, nossos destinos são mutuamente interessantes um instante, alguns instantes o grande espelho e aí a minha vida ia fazer mais sentido e a sua talvez mais que a minha", diz o sujeito da canção, em pleno êxtase que recupera a relação pederasta grega.
E atualiza, haja vista que, agora, quem canta, mesmo sendo o mais velho, quer ser "o amante do amante": quer ensinar e aprender: jogar com as trocas de papéis pedagógicos, algo pouco comum na Grécia, e só sugerido no final do livro, durante o discurso apaixonado de Alcibíades.
O sujeito de "Amor mais que discreto", por cantar um amor discretíssimo (platônico: "que é já uma alegria até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo, seu agora, seu antes, seu depois"), mescla as figuras referenciais de Alcibíades e Sócrates, a fim de, "não por falta de pudor, mas por coragem, virilidade e amor" (como canta o sexteto amados amantes glbts, da peça de Zé Celso), insinuar um amor que não se consome, apesar do desejo latente.
Afinal, como Alcibíades relata: “(...) quando me levantei com Sócrates, foi após um sono em nada mais extraordinário do que se eu tivesse dormido com meu pai ou um irmão mais velho”. O mais total interdito, como diz o sujeito de "Amor mais que discreto".

***

Amor mais que discreto
(Caetano Veloso)

Talvez haja entre nós o mais total interdito
Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer
Eu não cheguei a ser

Eu sou um velho
Mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes
O grande espelho
E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha,
Talvez bem mais que a minha
Os livros, filmes, filhos ganhariam colorido
Se um dia afinal
eu chegasse a ver que você vinha
E isso é tanto que pinta no meu canto
Mas pode dispensar a fantasia
O sonho em branco e preto
Amor mais que discreto
Que é já uma alegria
Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo
O seu agora, seu antes, seu depois
Sem ser remotamente
Se quer imaginado
Se quer imaginado
Se quer
Por qualquer de nós dois

321. Sangrando

"Nada de mergulhos. É na superfície que o real, minúsculo plâncton, se trai", diz uma poesia de Paulo Henriques Britto. Para depois completar: "Só o raso é cool, a dor é kitsch".
Não quero, nem tenho tempo e espaço para tanto, entrar na discussão da definição de kitsch. Importa apenas saber que me guio pelo texto de Abraham Moles (O kitsch). Além do mais, penso que, no Brasil, ser ou não ser kitsch passa por uma forte imposição do gosto de cada um sobre o objeto.
Aqui onde estão os homens é tudo junto e misturado, apesar de teimarmos em separar e distinguir, a fim de, na nossa vã autoironia, forjarmos (assim pensamos ser) a civilidade.
Por exemplo, as interpretações passionais (daquelas com o coração e o estômago na boca), depois da cool bossa nova, são consideradas kitsch. Ou seja, exageradas e melodramáticas e até cafonas (outro termo complexo, por aqui).
São, portanto, as canções das chorumelas amorosas, defendidas, mesmo pós bossa nova, por alguns: como a diva do rádio Lana Bittencourt. De um tempo em os recursos técnicos pouco ajudavam à captação da voz dos cantores, ao contrário, exigiam o canto a plenos pulmões, Lana, seus trejeitos físicos de palco e sua potência vocal são a fiel memória e afirmação do Brasil Kitsch: latino, quente, tropical - que não esconde a dor de um coração rasgado e sangrando.
Assim sendo, Lana Bittencourt cantando a dramática "Sangrando", de Gonzaguinha, no disco Jubileu de prata (1982), é o ápice kitsch, já que aí temos um sujeito deixando vazar a imensidão de sua dor, através do canto: o canto é dor que faz sangrar e isso precisa ser entendido (e respeitado) pelo ouvinte. O sujeito canta o que vive e vive aquilo que sua voz entoa.
É no canto que o sujeito se entrega, diz de si, compõe sua história, insere-se no mundo. Cantor de si e do mundo ao redor, ele canta as lutas individuais e coletivas. Cantar, para ele, é estar à disposição do próprio canto: da vida, da alegria e da dor - e tudo sangra, para o bem e para o mal.
O canto é a sangria medicinal do sujeito que canta. Mas é, por outro lado, a sangria mistura de vinhos, frutas e especiarias para os ouvidos de quem ouve a mensagem do sujeito: é catarse: emersão da/na vida, pelo canto (submersão) alheio.
Cantar é apenas o jeito que o cantor tem de viver o que é amar. E Lana Bittencourt, com seu preciosismo vocal, de todos os sotaques, ama e sabe amar seu público.

***

Sangrando
(Gonzaguinha)

Quando eu soltar a minha voz
Por favor entenda
Que palavra por palavra
Eis aqui uma pessoa se entregando

Coração na boca
Peito aberto
Vou sangrando
São as lutas dessa nossa vida
Que eu estou cantando

Quando eu abrir minha garganta
Essa força tanta
Tudo que você ouvir
Esteja certa
Que estarei vivendo

Veja o brilho dos meus olhos
E o tremor nas minhas mãos
E o meu corpo tão suado
Transbordando toda a raça e emoção

E se eu chorar
E o sal molhar o meu sorriso
Não se espante, cante
Que o teu canto é a minha força
Pra cantar

Quando eu soltar a minha voz
Por favor, entenda
É apenas o meu jeito de viver
O que é amar

17 novembro 2010

320. Balada de Gisberta

A brasileira Gilberta Salce Junior foi assassinada na cidade do Porto, em Portugal, em fevereiro de 2006. Antes, durante dois dias, sofreu todo tipo de violência transfóbica verbal e física, mantida sob cárcere, por um grupo de adolescentes (entre 12 e 16 anos de idade).
A "Balada de Gisberta", de Pedro Abrunhosa, restitui à personagem sua condição humana, destroçada; leva-nos, com tais informações extras, a pensar sobre as políticas públicas de segurança e respeito mútuo universais; e guarda de menores.
Cantada em primeira pessoa, a canção, com suas porções generosas de fantasia, realidade e delírio, pergunta: Qual é a participação de cada um de nós (ouvintes: tocados e chocados) neste monstruoso assassinato? O que motiva tais gestos? Corpo profanado pelas crianças-carrascos, que dizem estar "brincando", Gisberta exige resposta, ação e mudança coletiva e efetiva.
É com esta canção que Maria Bethânia fecha o primeiro ato de seu show Amor Festa Devoção (guardado em disco de mesmo nome, 2010). Transfigurada em Gisberta (a sem nome, sem sexo: só paixão e queda) a cantora imprime o tom mais que perfeito para marcar a saída de cena: quando perigo e encanto; alerta e convite nos envolvem.
Moradora de rua, arrastada, depois da tortura, para ser arremessada dentro de um poço d'água e morrer afogada, Gisberta é símbolo e signo de nossa condição (des)humana. Aliás, ela seria queimada viva, mas a água, ao invés do fogo, pareceu ser um final "melhor": já que o corpo afundaria, apagando para sempre a imagem de Gisberta e da "brincadeira infantil".
A água e seu mugido fez de Gisberta a sereia que não nos deixa esquecer o quão longe estamos do amor (potência sempre em desenvolvimento) coletivo. Se só o (trans)amor é real, Gisberta o chama: mesmo que ele esteja tão longe.
O amor é tão longe! Há limite para a brincadeira? Qual? O fato de Gisberta ser soropositiva e toxicodependente, como sugeriram alguns advogados? Quem matou Gisberta? A água ou as crianças?, perguntou o Ministério Público. Homicídio ou afogamento?
Importa mesmo saber? O fato é que todos (indistintamente) precisamos rever conceitos, pois, enquanto enche-se as micaretas LGBT, Gisbertas à mancheia morrem. Alguma coisa está fora da ordem faz tempo: militantes, ou não, precisam perceber isso.
"Perdi-me do nome, hoje podes chamar-me de tua", diz a Gisberta que fala na canção. Ela é uma legião: carrega na voz a multidão de marginalizados, que servem apenas para dançar em palácios, oferecer-se a mil homens, e logo depois ser descartados.
Urge responder à altura: dialogar e dizer a Gisberta que, acima dos fundamentalismos, ainda vale a pena e é possível sonhar e realizar dias melhores, sem juízos finais. Agora. Pois o céu da felicidade, de cada um e de todos, não pode esperar.

***

Balada de Gisberta
(Pedro Abrunhosa)

Perdi-me do nome,
Hoje podes chamar-me de tua,
Dancei em palácios,
Hoje danço na rua.
Vesti-me de sonhos,
Hoje visto as bermas da estrada,
De que serve voltar
Quando se volta p’ró nada.

Eu não sei se um anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.

Sambei na avenida,
No escuro fui porta-estandarte,
Apagaram-se as luzes,
É o futuro que parte.
Escrevi o desejo,
Corações que já esqueci,
Com sedas matei
E com ferros morri.

Trouxe pouco,
Levo menos,
E a distância até ao fundo é tão pequena,
No fundo, é tão pequena,
A queda.
E o amor é tão longe,
O amor é tão longe
E a dor é tão perto.

16 novembro 2010

319. Menina veneno

"O relógio quebrou e o ponteiro parou em cima da meia-noite, em cima do meio-dia, tanto faz porque depois de um vem dois e vem três e vem quatro". Os versos da canção "O relógio quebrou", de Jorge Mautner", dizem muito ao sujeito de "Menina veneno", de Ritchie e Bernardo Vilhena.
Do disco Voo de coração (1983), "Menina veneno", com sua introdução futurista, embalou geração. Ainda hoje é canção muito executada, pelo afeto do e com o público: há, de fato, uma sintonia passional que cativa e torna o ouvinte cúmplice do sujeito que fala.Meia-noite ou meio dia é o marco virtual - o xis, o instante zero - do indivíduo tomado pela vontade de ser: é o tempo e o espaço de se desfazer (do passado, ainda presente) e desejar (o futuro, que já se insinua). É neste lugar que ela (menina veneno: musa e sereia) sobe as escadas e invade os sentidos: o sujeito está pronto à sua espera.
Sinestésica, "Menina veneno" investe mais no desenho do quadro, a fim de melhor envolver o ouvinte: o sujeito quer que nós tenhamos a exata experiência que ele está vivendo. Para tanto, quebra algumas expectativas - ao invés de dizer "do princípio ao fim", ele diz "do princípio ao sim", afinal o desejo de desejar não pode ter ponto final - e plasma elementos com forte apelo visual.
A descrição luxuriosa do ambiente (do quarto do sujeito) enche o ouvinte de vontade: transporta-nos para dentro da cena, faz-nos também atores, deliciando-nos com o veneno-remédio desta menina que nos dá o desassossego necessário à afirmação da alegria: do corpo, da carne em brasa.
Alegria que não cabe em si, o mundo é pequeno demais, o real não dá conta, é preciso fazer uma canção, cantar o encontro, perpetuar esta menina (aqui dentro do sujeito), inventar sobre aquilo que se deseja, sente e vive. Ela se embrenha em toda cama, todo lençol: ela é ela e está nele, é ele: seus olhos verdes no espelho.
Da musa fez-se o canto; a vida que se deve viver. Toda noite, no silêncio do quarto, o prazer solitário é interrompido, deliciosamente, por ela: só dá ela.
Por fim, como um Orfeu que se volta para confirmar se Eurídice lhe acompanha, o sujeito abre os olhos e percebe sua solidão: o calor e o corpo molhado são reflexos de sua criação ficcional mas, por isso, não menos verdadeira, já que ao cantar a menina ele deu vida a ela: que continuará, nem precisa chamar, levando-o a (trans)pirações noturnas.

***

Menina veneno
(Ritchie / Bernardo Vilhena)

Meia-noite no meu quarto
Ela vai subir
Ouço passos na escada
Vejo a porta abrir
Um abajur cor de carne
Um lençol azul
Cortinas de seda
O seu corpo nu

Menina Veneno
O mundo é pequeno demais pra nós dois
Em toda cama que eu durmo
Só dá você, só dá você,
Só dá você,

Seus olhos verdes no espelho
Brilham para mim
Seu corpo inteiro é um prazer
Do principio ao sim
Sozinho no meu quarto
Eu acordo sem você
Fico falando pras paredes
Até anoitecer

Menina Veneno
Você tem um jeito sereno de ser
E toda noite no meu quarto
Vem me entorpecer, me entorpecer
Me entorpecer,

Meia-noite no meu quarto
Ela vai surgir
Eu ouço passos na escada
Vejo a porta abrir
Você vem não sei de onde
Eu sei vem me amar
Eu nem sei qual o seu nome
Mas nem preciso chamar

14 novembro 2010

318. Canções e momentos

A tarefa de registrar o real, o momento, o acontecimento é (sempre) fadada ao fracasso. Como contar o amor enquanto se ama? Como descrever o beijo enquanto se beija? Por isso, entre outros aspectos, há a poesia: para estabelecer, ao mesmo tempo, a distinção e o amálgama entre o momento e sua canção.
O sujeito de "Canções e momentos", um cantor popular, cuja voz é instrumento de vida (para si e para quem lhe ouve), percebe isso e canta o fracasso e a glória de seu empreendimento.
Gravada no disco Yauaretê (1987), "Canções e momentos", de Milton Nascimento e Fernando Brant, é o canto da própria canção e dos momentos que ela tenta capturar; portanto, metacanção: ao dizer o que pode e o que não a voz (que vai ao infinito para amarrar todos nós), a canção fala de si, investiga suas entranhas, vai à sua própria raiz.
O sujeito, cantor, assume o descontrole sobre o poder da voz: elo entre o momento e a canção. Ela, a voz, é quem une o sentimento do palco e da plateia. A magia dionisíaca em que ouvinte e aquilo que é cantado se condensam: afirmação da existência pela comunhão: o ouvinte toma aquela mensagem para si; incorpora (põe no jeito de corpo) o que é dito: se acha ao se perder, induzido pela voz (da sereia).
Há poesia, diz-nos o sujeito, quando os momentos se casam com a canção. Ou seja, quando a metáfora diz mais do que a vã e fulgás realidade; quando as fronteiras sutis entre ficção e fato borram: eis o lugar (tempo e espaço) da dúvida, do motor da fé, da poesia, da vida.
O sujeito, que vive de fazer o casamento entre canções e momentos, tal é sua profissão e missão como cantor, ele mesmo, não consegue explicar o lugar exato deste choque das duas instâncias: por isso canta, faz uma canção, usa a voz, para contar a canção, nosso livro de cabeceira.
A canção jamais será a coisa-em-si: será sempre índice, sintoma, signo. Daí a importância e a necessidade de permanecer cantando, espalhando espelhos pelo carnaval da existência. A voz, que tenta organizar o caos e a orgia (feliz ou triste) da vida, é a única detentora de uma verdade possível: ela vai ao infinito, ao indizível e impensável, arrastando-nos; situando-nos; decifrando sonhos e roçando a pele ardida dos momentos.

***

Canções e momentos
(Milton Nascimento / Fernando Brant)

Há canções e há momentos
Eu não sei como explicar
Em que a voz é um instrumento
Que eu não posso controlar
Ela vai ao infinito
Ela amarra todos nós
E é um só sentimento
Na platéia e na voz

Há canções e há momentos
Em que a voz vem da raiz
Eu não sei se quando triste
Ou se quando sou feliz
Eu só sei que há momentos
Que se casa com canção
De fazer tal casamento
Vive a minha profissão

13 novembro 2010

317. Domingo 23

Lançada no disco Ben, 1972, de Jorge Benjor, "Domingo 23" celebra o santo guerreiro: São Jorge. A canção se encaixa com perfeição na orgia mítica que Rita Ribeiro promove no disco Tecnomacumba (2006).
Com sua voz limpa, afinada e, portanto, impactante, Rita Ribeiro põe para girar, diante do ouvinte, a fé nos deuses, santos e entidades que nos fortalecem: consolam os descaminhos; orientam a viagem.
Rita Ribeiro canta, com respeito à mistura (sincretismo nosso de cada dia) e com o amor de uma mortal, a folia da eterna transformação de todas as coisas; a magia quente que nos protege e revigora nosso desejo de viver.
Ao unir os cantos e toques trazidos com os negros aos instrumentos e recursos eletrônicos, Rita mostra como tradição e novidade podem viver juntos: iluminar mundos passados e futuros, no presente. A tradução, verdadeira transcriação, de Rita para "Domingo 23", de Jorge Benjor, é deslumbramento.
23 de abril é dia de São Jorge: santo popular, reverenciado pelos moradores (sempre vestidos com as roupas e as armas de Jorge) do Rio de Janeiro: a orgiástica cidade de São Sebastião. Assim, tudo junto e misturado: microBrasil.
Seja na versão católica, seja na versão nórdica do mito, sentado em seu cavalo, Jorge matou um dragão. Já a relação entre Jorge e a lua nasce no Brasil, com a ligação sincrética entre ele e Oxossi: orixá associado à lua. Importa lembrar que na Umbanda é com Ogum que o santo é associado.
"Domingo 23" é o canto do grande dia: da festa pelo passeio de Jorge, que com sua espada está sempre disposto à proteger quem lhe roga. Sábio, o justiceiro ensina que com o canto (de um passarinho) nunca, neste mundo, se está sozinho.
Precisamos do cantar alheio: cantar Jorge é receber em troca sua proteção, seu canto, para sair da história e cair na vida.

***

Domingo 23
(Jorge Benjor)

Domingo 23, Domingo 23
É dia de Jorge
É dia dele passear
Dele passear
No seu cavalo branco
Pelo mundo prá ver
Como é que tá
De armadura e capa
Espada forjada em ouro
Gesto nobre
Olhar sereno
De cavaleiro, guerreiro justiceiro
Imbatível ao extremo
Assim é Jorge
E salve Jorge viva viva viva Jorge

Pois com sua sabedoria e coragem
Mostrou que com uma rosa
E o cantar de um passarinho
Nunca nesse mundo se está sozinho
E salve Jorge
E salve Jorge

12 novembro 2010

316. Chiquita bacana

A Martinica, ilha do tempo e espaço paradisíaco, é condensação das delícias tropicais: flores, sol e mar. É também o lugar favorável de onde sopram o ventos do aproveitamento da vida: o gesto de transar todas "sem perder o tom", com liberdade individual.
O Existencialismo, que restitui ao indivíduo a subjetividade e a responsabilidade sobre as próprias ações, tenta libertar o ser na medida em que torna o indivíduo mestre de si.
Martinica e Existencialismo se cruzam na deliciosa marchinha "Chiquita bacana", de João de Barro e Alberto Ribeiro. Os dois motes servem para plasmar a liberdade que o carnaval proporciona.
No carnaval - "luxúria e fantasia, sonho e felicidade" -, com a suspensão da vigilância religiosa (da dicotomia Deus Senhor e humano servo), o indivíduo pode ser o que quiser: dá-se ao luxo de ser dono de si.
O corpo, sem vestido ou calção, sem lenço, sem documento, entra a serviço da alegria: da curtição da vida e das delícias que ela nos dá de graça. Para Henri-Pierre Jeudy, no livro O corpo como objeto de arte: "o corpo, como poder infinito dos possíveis, não tem necessidade de se submeter à regra do especular; sua aventura consiste justamente em quebrar o espelho ou passar para o outro lado".
Ao melhor modo da canção "Épico", de Caetano Veloso, que diz "destino eu faço não peço, tenho direito ao avesso", a Chiquita Bacana personifica a potência libertária do Existencialismo, que, segundo a marchinha sugere, é melhor interpretado e vivido (dá crias) no litoral tropical.
Aliás, se pensarmos que "não existe pecado do lado de baixo do Equador", por exemplo, entendemos a voz que canta em "A filha da Chiquita Bacana", também de Caetano Veloso (criador e cria da Tropicália): que não cai em armadilha e distribui bananas com os animais.
Voltando à marchinha "Chiquita Bacana", o canto daquela que entrou para "women's liberation front", temos um sujeito que observa a personagem: admira sua competência diante da vida; a prioridade dada à existência, sem os grilos (culpas, pecados e juízos) que teimam em querer achar a essência das coisas.
A Chiquita Bacana é aquela que experimenta a vida por outras e novas perspectivas: "só faz o que manda o seu coração". Interessante perceber a recepção feita pelos compositores, na canção, das perspectivas comportamentais em expansão na época. Assim, a Chiquita, que é bacana, é a carnavalização tropical, brasileira, do pensamento de Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Boris Vian, entre outros pensadores do Existencialismo.
Gravada com a brejeirice de Emilinha Borba (Emília no país dos sucessos, 1960), a canção de 1948 ganha contornos satíricos e afetados importantes à sua fruição: tenciona a festa da existência; o gosto de provar as oferendas da vida: o verão e o sal da terra.

***

Chiquita bacana
(João de Barro / Alberto Ribeiro)

Chiquita bacana lá da Martinica
Se veste com uma casca de banana nanica

Não usa vestido, não usa calção
Inverno pra ela é pleno verão
Existencialista com toda razão
Só faz o que manda o seu coração

11 novembro 2010

315. Minha fama de mau

- Você está muito mau hoje - observou, aborrecido, Vieltchâninov.
- Mas porque não devo ser mau, como todos os demais? - exclamou impetuosamente Páviel Pávlovitch.
Lembro sempre desse trecho do livro O eterno marido, de Fiódor Dostoiévski, quando ouço "Minha fama de mau", de Erasmo Carlos e Roberto Carlos. Isso porque, nessa canção, há um sujeito que assume, imbuído pelo desejo de conquista, o lado b: aquele que todos nós temos, mas, domesticados e docilizados, fazemos de tudo para conter, esconder e negar.
O sujeito da canção, ao contrário, usa sua fama de mau, ou seja, ele mesmo não se diz mau, autocanta-se pelo canto alheio, como charme pessoal. Faz parte do show manter um certo clima cafajeste.
Como todos os outros rapazes de sua turma, ele precisa se impor sobre os desejos femininos de seu broto, para não parecer mole: temor maior do macho sedutor. Igual aos parceiros de aventuras e conquistas, o sujeito precisa ser (ao menos parecer: sintoma das inseguranças intrínsecas à juventude, mesmo a transviada) mau.
Gravada por Erasmo Carlos e Rita Lee (no disco Erasmo Carlos convida, 1980), "Minha fama de mau" plasma um momento decisivo para o rock nacional: um gênero importado e de atitude agressiva (jovem e moderna), mas que, por aqui, agraciado pela nossa malemolência, tendia para o lado bom dos afetos.
Não à toa o livro de memórias de Erasmo Carlos chama-se Minha fama de mau. O empolgante livro conta os caminhos e os descaminhos percorridos pelo tremendão para atravessar e manter a tal fama.
O monólogo interno que o sujeito estabelece para si na canção cria a própria canção. Deixar ou não deixar "meu bem" ir ao cinema, eis a questão: "Garota ir ao cinema é uma coisa normal, mas é que eu tenho que manter a minha fama de mau". O diálogo entre Rita e Erasmo no final da canção joga com o que cada parte (fêmea e macho) pode e não pode fazer.
O sujeito pop-rock capta isso e luta para manter a "fama de mau" roqueira. Ele faz isso pleno de referências sonoras: de "Splish splash" à "Flagra" - revelando sua fragilidade ao ouvinte que, envolvido pela melodia, torna-se cúmplice da maldade. Afinal, ainda persiste a torta ideia de que a melhor forma de seduzir é posando de star.

***

Minha fama de mau
(Erasmo Carlos, Roberto Carlos)

Meu bem às vezes diz
que deseja ir ao cinema
Eu olho e vejo bem
que não há nenhum problema
E digo não
Por favor
Não insista e faça pista
Não quero torturar meu coração

Garota ir ao cinema é uma coisa normal
mas é que eu tenho
que manter a minha fama de mau

Meu bem chora, chora
e diz que vai embora
Exige que eu lhe peça
desculpas sem demora
E digo não
Por favor?
Não insista e faça pista
Não quero torturar meu coração

Perdão à namorada é uma coisa normal
mas é que eu tenho
que manter a minha fama de mau

E digo não! Digo não! Digo não, não, não
E digo não! digo não! digo não, não, não

Perdão à namorada é uma coisa normal
mas é que eu tenho
que manter a minha fama de mau

10 novembro 2010

314. Você merece samba

O real é incapturável. Deste modo a canção, espaço da metáfora, da ilusão (da verdade ficcional), é menos enganadora do que o real, pois, diferente do pensamento aristotélico, que bsuca a essência das coisas, a canção (a arte) inventa verdades: assume a incompetência dos conceitos, da captação do real.
Cantar é fazer o elogio das partes que guardam o todo. Ou seja, cantar é compor um "canto paralelo" ao essencialismo, é assumir a eterna circularidade em torno das coisas, que não se deixam capturar no "todo": por isso cantamos e cantamos sempre.
Cantamos porque a vida (real) não dá conta das nossas merecidas necessidades. No canto criamos uma vida mais real, assumimos nossa fragilidade e a fragilidade das coisas ao redor.
O sujeito de "Você merece samba", de Carlinhos Brown (Diminuto, 2010), é a sereia que entoa o canto (a ilusão: o samba) que o outro merece, mas que a vida (real) não oferece. O sujeito da canção tem a sensibilidade de captar a crueldade da existência e transvaloriza-la em samba: em canção primordial que possibilita a reconexão do outro (destinatário) com o mundo.
Ninguém merece sofrer, merece novo amor: "encantado encarnado e esculpido pelo mar", com o sujeito assumindo sua posição sereia. Ao dizer "você não merece ilusão", o sujeito deixa embassado o fato de ele mesmo estar construindo uma ilusão (o samba), mas que é uma ilusão que assume seu destino, diferente daquela que a vida ordinária oferta (fingindo que contem a verdade).
A única verdade possível é a verdade estética. Eis a mensagem do sujeito da canção de Carlinhos. Ele recorta e cola na sua paisagem amorosa e sonora os beijos que o ouvinte merece: "um jeito, um fato novo, um salto, um solar".
A vontade do sujeito é iluminar o outro: aquecer a borda escura da solidão "de um copo de bar". O canto da sereia, aqui, é o canto do sonho; do acesso à verdade possível.
"Você merece samba" é metacanção (canção que fala de si), pois diz e é samba. Ela, ainda, é amostra do movimento das mixagens democráticas engendradas por Carlinhos Brown que, aqui, diminui a percussão para deixar o canto falar.

***

Você merece samba
(Carlinhos Brown)

Você não merece sofrer
Merece samba
Os olhos são portas saídas de um coração
Então você pode chorar
Um novo amor chegará
Encantado encarnado e esculpido pelo mar
Você não merece ilusão
Merece beijos
Um jeito, um fato novo, um salto, um solar
Pra quê visitar solidão
Na borda infinita de um copo de bar
Se eu posso fazer o que posso
Lhe fazer sonhar
La iá
La iá
La ra iá Amor

313. Me disseram

Joyce começou sua carreira num tempo em que a mulher cantava aquilo que os homens compunham para elas cantar. Incomodada, ela passou a traduzir em canções delicadezas e filigranas do feminino.
Com a vontade de dizer o que é ser feminina por todo lugar, com o corpo todo, sem os entraves da normatividade do macho adulto no comando, a obra de Joyce é atravessada pela afirmação de uma vida íntima e apaixonada.
Acompanhada pelo violão, ela mostrou que "o buraco é mais em cima": na voz, na média entre aquilo que dá voltas por dentro e aquilo que afeta e queima a pele da mulher. Deste modo, Joyce abriu, na esteira de outras poucas cancionistas que lhe antecederam, com aparição bem pontual, caminho para a profusão de compositoras que, com o canto de um sujeito feminino na canção, não param de surgir.
Do disco Joyce (1968), o primeiro da cancionista, "Me disseram", de Joyce, é a revelação das intrigas que perturbam a voz da canção. A ousadia da expressão "meu homem" merece destaque, em uma época em que era a mulher que "era" do homem, e não o contrário.
A ousadia se prolonga quando a mulher, de modo todo natural, sem grilos e, portanto, revolucionário, espalha (para nós: ouvintes) as fraquezas do homem: se a fama dele é de boêmio e de fazer mulher chorar, "só eu sei que ele gosta de carinho, que não quer ficar sozinho, que tem medo de se dar".
Ora, educada na arte de "se dar", a mulher voz da canção, de viés, questiona os parâmetros que regulam a fragilidade dos seres: ele, que no fundo é criança, precisa dela para cantá-lo. É no corpo dela que ele encontra a paz infinita e o caminho mais certo.
Há um jogo amoroso de deslizamento do poder. O senhor vira escravo, e vice-versa. Ela destrona a fama de (lobo) mau, do seu homem, apontando a força que exerce sobre o pensamento dele: que transparece autosuficiência (nasceu com canção dentro do peito), não precisa do canto alheio.
Porém, o mais revelador vem nos derradeiros versos, quando a mulher, sem rancor ou falso instinto de superioridade, imbrica ao desejo do homem o seu próprio desejo: preservando um segredo só dos dois, algo que se equaliza na intimidade dos corpos, quando os dois, juntos, continuam a viagem onde tudo lhes fascina.

***

Me disseram
(Joyce)

Já me disseram
Que meu homem não me ama
Me contaram que tem fama
De fazer mulher chorar
E me informaram
Que ele é da boemia
Chega em casa todo dia
Bem depois do sol raiar
Só eu sei
Que ele gosta de carinho
Que não quer ficar sozinho
Que tem medo de se dar
Só eu sei
Que no fundo ele é criança
E é em mim que ele descansa
Quando pára pra pensar

Já me disseram
Que ele é louco e vagabundo
Que pertence a todo mundo
Que não vai mudar pra mim
E me avisaram
Que quem nasce desse jeito
Com canção dentro do peito
É boêmio até o fim
Só eu sei
Que ele é isso e mais um pouco
Pode ser que seja louco
Mas é louco só no amor
Só eu sei
Quando o amor vira cansaço
Ele vem pro meu abraço
E eu vou pra onde ele for

08 novembro 2010

312. O vira

Como sabemos, gatos pretos são associados a vários tipos de sortilégios: "dão azar". Na literatura, por exemplo, o conto "O gato", de Edgar Allan Poe, é a convergência de todos os maus presságios que a figura do felino pode engendrar.
Nunca é demais lembrar que os gatos pretos entraram na lista dos hereges perseguidos pela Inquisição. Não havia, portanto, figura mais simbólica para ser incorporada à mística do trio formado por João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad. Era exatamente isso, ou melhor, brincar com os sentidos cristalizados das coisas, que os Secos & molhados queriam e fizeram ao gravar "O vira", de João Ricardo e Luli.
Com um ritmo estranho e híbrido (algo que antecipou o rock dos anos 80) sobre a típica (e folclórica) "dança portuguesa", o grupo, rostos ocultos e movimentos hipnotizantes de corpo, em "O vira" (Secos & Molhados, 1973), chamava atenção para a androginia do desejo: para a pele sem pele das vontades; para as múltiplas vidas.
Abro um parêntesis para lembrar da canção "Vira vira", de Júlio e Dinho, do grupo Mamonas assassinas que com um único disco (1995) entrou para a história da canção brasileira pela anarquia sugerida e por zombar (com alegria) dos caretas de plantão.
Voltando aos Secos e Molhados, eles mexiam, de uma só tacada, com vários signos da cultura formadora do "macho adulto branco" brasileiro. O refrão "vira, vira, vira homem / vira, vira, viar lobisomem" tanto desperta a atenção para a metamorfose de algo distante do ouvinte; quanto representa um imperativo exigindo que o outro se defina: homem ou lobisomem?; mas ainda pode ser ouvido como um luxurioso convite à mutação.
Para João Silvério Trevisan, no livro Devassos no paraíso, "O lobisomem, no caso, referia-se ironicamente a esses anônimos habitantes da grande cidade, que após a meia-noite deixam seu cansativo papel de abóboras para se transformar em atrevidas conderelas"; passam por debaixo da escada para, lá no fundo azul, longe dos olhares inquisidores, ser o que são.
Vocalista do grupo, aquele que veio para confundir, Ney Matogrosso, com sua "postura de afronta sexual", como o autor destaca, é personificação da dúvida que balança. Em entrevista a Vânia Toledo e Nelson Motta, à revista Interview, Ney dispara: "para mim isso é uma missão, acabar com essa história de que homossexual é uma coisa triste, sofrida, que tem de ficar se escondendo".
Para Trevisan, "a ambiguidade ['virulenta entre nós'] dos Dzi Croquetes [grupo de rapazes que unia várias linguagens artíticas no palco para "viver perigosamente até o fim" as possibilidades do prazer] chegava nele [Ney Matogrosso] a um verdadeiro paroxismo".
Clarice Lispecto dizia que "os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me interessa". Parece ser o mesmo sussurro que interessava aos Secos & Molhados: o além das aparências, mas que se percebe nas próprias aparências.

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O vira
(João Ricardo / Luli)

O gato preto cruzou a estrada
Passou por debaixo da escada
E lá no fundo azul
na noite da floresta
A lua iluminou
a dança, a roda, a festa

Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira
Vira, vira, lobisomen
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira

Bailam corujas e pirilampos
entre os sacis e as fadas
E lá no fundo azul
na noite da floresta
A lua iluminou
a dança, a roda, a festa

Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira
Vira, vira, lobisomen
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira

07 novembro 2010

311. Deusa da minha rua

Nada se perde. Os contatos e as misturas culturais (processo continuum) formam nossa contemporaneidade. Se as economias centrais impõem suas culturas, as economias periféricas não fazem por menos e preservam suas peculiaridades, além de promoverem, no local, elementos híbridos globais. Compartilhamos o mesmo espaço planetário.
Com isso, podemos pensar as poéticas que, se hoje são lançadas como "novidades", na real, são releituras (recontextualizações) de elementos da história. O sampler, no meio sonoro, é forte exemplo disso, com sua capacidade de misturar os fragmentos do passado com os do presente.
Noutra direção, penso nessa "permanência da tradição" enquanto ouço Nelson Gonçalves cantar "Deusa da minha rua", de Newton Teixeira e Jorge Faraj. Com sua voz calcada no operístico, na virtuosidade da garganta e dos pulmões, Nelson Gonçalves dá o clima de serenata que a canção pede. Aliás, a canção está guardada no disco entitulado Serenata, de 1991.
Digo isso porque "Deusa da minha rua" recupera os moldes das cantigas de amor medievais: com um sujeito que idealiza e ama a amada à distância: ela tão rica e ele tão pobre. As posições "plebeu" e "nobre" são os disjuntores das personagens.
O sujeito é o fiel vassalo que tem plena consciência da impossibilidade na consumação do amor. Aliás, ele nem pensa em consumação, longe que está de alcançar as alturas que a mulher adorada está.
O canto, assim, ganha um toque de sofrimento, melancolia e abandono de si. Ela deusa (impossível de ser mensurada), ele fiel (eterno cantor em busca (sempre fracassada) pela palavra mais certa): eis os lugares das personagens.
A canção, letra e melodia, tem uma estrutura que desenha a deusa, ao mesmo tempo em que estabelece a distância: basta percebermos que é a partir da imagem da mulher refletida na poça d'água que o sujeito canta.
Ciente de sua insignificância, ele nem sequer ergue os olhos para vê-la passar: como uma deusa não pode ser vista pelo humano, ele se contém com a imagem embassada e tremida na água: elemento que tanto representa as lágrimas vertidas pelo sujeito, quanto o embriagamento deste no mar da ilusão ("espelho da minha mágoa") que a mulher simboliza.
Ele é daqueles que, se pudesse, não mandaria ladrilhar a rua, pois assim perderia o reflexo: único índice da mulher mais amada. Ao contrário de Orfeu, que perdeu sua Eurídice ao tentar olha-la de frente, o sujeito de "Deusa da minha rua" sabe o lugar que ocupa nesta sofrida relação; sabe como agir para manter o seu sonho impossível (sonho que não vale a pena sonhar): só assim, ela nunca fugirá e ele sempre terá a quem cantar, mantendo-se vivo, na beira do abismo.

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Deusa da minha rua
(Newton Teixeira / Jorge Faraj)

A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
Costuma se embriagar
Nos seus olhos eu suponho
Que o sol, num dourado sonho
Vai claridade buscar

Minha rua é sem graça
Mas quando por ela passa
Seu vulto que me seduz
A ruazinha modesta
É uma paisagem de festa
É uma cascata de luz

Na rua uma poça d’água
Espelho da minha mágoa
Transporta o céu
Para o chão
Tal qual o chão de minha vida
A minh’alma comovida
O meu pobre coração

Espelhos da minha mágua
Meus olhos
São poças d’água
Sonhando com seu olhar
Ela é tão rica e eu tão pobre
Eu sou plebeu
ela é nobre
Não vale a pena sonhar