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04 outubro 2010

277. A feminina voz do cantor

Para Simone Silva

Em Pietá (2003), a voz de Milton Nascimento é um vigoroso presente, como sempre. Mas aqui há um frescor e uma juventude (naquele sentido de movimento em direção ao risco) que comovem.
Em "A feminina voz do cantor", de Milton Nascimento e Fernando Brant, temos o canto do sujeito que busca seu contato primordial com o canto materno: aquele canto (ruidosamente silencioso) que atravessa a relação dual mãe-filho.
O sujeito, um cantor, investiga e afirma, pela afirmação materna ("minha mãe me falou"), a potência feminina de sua voz. Ele se une ao sujeito de "Superhomem, a canção", de Gilberto Gil, ao sugerir que, para ser grande e ser inteiro, é preciso equalizar (não negar) o macho e a fêmea na voz. Afinal, "quem entende essa voz (do cantor) sem as vozes que ele traz do interior?". Interior: de dentro do indivíduo; e de fora - "das melodias vindo lá do quintal".
Ou seja, sem a restauração da história (das vozes que o cantor ouviu), suspendendo o automatismo do instante do canto, é impossível sentir a grandeza daquilo que ele carrega na voz: resíduos do passado; fragmentos de desejos; fiapos de vozes.
Para tanto, o sujeito ao invés de falar de uma "voz feminina", aponta em si uma "feminina voz": desdobrando os sentidos e incutindo novas e luminosas recepções, no ouvinte. "Feminina voz" é eco uterino: o outro lado, de lá, da moeda, aqui, na voz do cantor.
Caçador de si, o cantor de "A feminina voz do cantor" reconhece e valoriza a sua trajetória sonora: "por tanto amor, por tanta emoção, a vida me fez assim", parece sugerir. A sensação de ecos e as sobre e justaposições de vozes que ouvimos na canção, além do arranjo algo onírico e trovadoresco, quer figurativizar a legião que compõe a voz (singular e de trovador) do cantor: ele é muitos; é a condensação e a reverberação daquilo que viu e ouviu, desde o "canto primordial". Ele canta acontecimentos.
Ele usa a experiência tanto para se individualizar, quanto para tentar chegar à criação do espaço/tempo do paraíso-útero da mãe (da lenha do fogão). Ao ouvir o passado, o sujeito cria seu presente: estabelece dispositivos de salvação para si: voz perdida (solta) na cidade.
A delicada homenagem às vozes de Elis e da Maria Sapoti é precisa. Ambas, para o cantor-sujeito, e para a história de nossa canção, representam o dom que leva o sujeito a cantar. Seu canto é uma carta (diálogo e resposta) amorosa com o feminino que lhe constitui. Ele canta porque elas cantaram.
Se a cidade canta, e se encanta, com o cantor é porque ele, por sua vez, foi afetado (cantado) pelo feminino em nós. Ele canta para chegar a ela: à feminina voz. Ele se abre para fora e para dentro de seu canto. E, assim, afeta o ouvinte: lança a rede que conecta e sustenta a todos, na vida. Bom é cantar!

***

A feminina voz do cantor
(Milton Nascimento / Fernando Brant)

Minha mãe que falou
Minha voz vem da mulher
Minha voz veio de lá, de quem me gerou
Quem explica o cantor
Quem entende essa voz
Sem as vozes que ele traz do interior?

Sem as vozes que ele ouviu
Quando era aprendiz
Como pode sua voz ser uma Elis
Sem o anjo que escutou
A Maria Sapoti
Quando é que seu cantar iria se abrir?

Feminino é o dom
Que o leva a entoar
A canção que sua alma sente no ar
Feminina é a paixão
O seu amor musical
Feminino é o som do seu coração

Sua voz de trovador
Com seu povo se casou
E as ruas do país são seu altar
Feminina é a paixão
No seu amor musical
Feminino é o som do seu coração

Sua voz de trovador
Com seu povo se casou
E as ruas do país são seu altar
A cidade é feliz
Com a voz do seu cantor
A cidade quer cantar com seu cantor
Ele vai sempre lembrar
Da lenha de um fogão
Das melodias vindo lá do quintal
As vozes que ele guardou
As vozes que ele amou
As vozes que ensinaram: bom é cantar

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Pra quem não sabe Ângela maria(sapoti),foi matriz inspiradora de Elis regina.