29 outubro 2010

302. Mulato bamba

Samba de 1931, "Mulato bamba", de Noel Rosa, é uma das primeiras canções a tratar do desejo homoerótico sem as costumeiras cores pejorativas. Pelo contrário, o sujeito da canção afirma a saudade que o povo do morro vai sentir, quando o tal mulato deixar o lugar "para se livrar do feitiço e do azar das morenas de lá".
Noel trabalha sua verve de cronista para dar vida a um mulato que "não quer se apaixonar por mulher": "não quer saber de fita nem com mulher bonita". A personagem é pintada e posta em cena, com naturalidade, sem grilos. Gesto incomum em um ambiente reconhecidamente machista como o samba.
O malandro da canção guarda em si os signos da boa malandragem: intimidade com o tintureiro (como o carro da polícia era chamado); tira samba; e "vive à custa do baralho, nunca viu trabalho". Uso o termo "malandro" aqui como um "ser de fronteira", como Cláudia Neiva de Matos, no livro Acertei no milhar, define.
Ao combinar o hibridismo do mulato, indivíduo, por si, de fronteira (ou do apagamento dela), com o jeito de corpo bamba, malandro, Noel espalha elementos, na canção, que estão recolhido, como potência, na figura (personagem título) cantada. Não bastasse isso, há a singularidade do desejo: forte, bamba, valente, o mulato não quer saber de mulher.
Lembro aqui um trecho de uma das Cartas de um sedutor, de Hilda Hilst: "Há em todas as mulheres um langor, um largar-se que me desestimula. Gosto de corpos duros, esguios, de nádegas iguais àqueles gomos ainda verdes, grudados tenazmente à sua envoltura". Tais palavras podem, sem nenhum descrédito para as obras (canção, de Noel, e texto, de Hilda), ser imaginadas como sendo ditas pelo mulato da canção.
Mário Reis, que a convite de Aloysio de Oliveira volta aos discos, regrava "Mulato bamba" em 1960, no belo Mário Reis canta suas criações em hi-fi. A voz suave, coloquial e pausada de Mário Reis traduz a captação fotográfica do sujeito da canção. A harmonia entre a voz de Mário e aquilo que é dito (cantado) é tanta que alguns ainda hoje acham que Noel e Mário são parceiros de composição neste samba.
Sem dúvida, a figura do mitológico Madame Satã vem sempre à mente quando "Mulato bamba" é executada. Alguns defendem que ele foi inspiração para Noel e, de fato, tudo leva a crer que sim, pois eles se conheciam: temido pela polícia, Satã embaralhava as normas ao se montar (de baiana e odalisca) para brilhar nos cabarés da Lapa carioca. Seja como for, ele era um mulato bamba.

***
Mulato bamba
(Noel Rosa)

Esse mulato forte
é do Salgueiro
Passear no tintureiro
era o seu esporte
Já nasceu com sorte
e desde pirralho
Vive à custa do baralho,
Nunca viu trabalho

E quando tira samba
é novidade,
Quer no morro ou na cidade
Ele sempre foi o bamba
As morenas do lugar
vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer
se apaixonar por mulher

O mulato
é de fato
E sabe fazer frente
a qualquer valente,
Mas não quer saber de fita
nem com mulher bonita

Sei que ele anda agora
aborrecido
Por que vive perseguido
Sempre e a toda hora
Ele vai-se embora
Para se livrar
Do feitiço e do azar
Das morenas de lá

Eu sei que o morro inteiro
vai sentir
Quando o mulato partir
Dando adeus para o Salgueiro
As morenas vão chorar,
Vão pedir pra ele voltar
Ele então diz com desdém:
"Quem tudo quer... nada tem"

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